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O que está em jogo
Dois Projetos de Lei voltados a regular os serviços de vídeo sob demanda entram em uma corrida no Congresso


Ao longo deste mês, houve, no Congresso Nacional, uma corrida entre dois Projetos de Lei (PLs) que tratam de um mesmo tema: a regulação dos serviços de vídeo sob demanda no País.
Sob a torcida de boa parte dos produtores independentes e com o aval do Ministério da Cultura (MinC), chegou a ser colocado na pauta da Câmara, em regime de urgência, o PL 8.889/2017, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT-SP) e com relatoria de André Figueiredo (PDT-CE).
No Senado, com a simpatia das grandes plataformas de streaming, o PL 2.331/2022, de autoria do senador Nelsinho Trad (PSD-MS) e transformado no substitutivo de Eduardo Gomes (PL-TO), foi aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos e remetido à Câmara.
Ao saber que o PL da Câmara entraria na Plenária, a Motion Picture Association (MPA), que representa empresas como Disney, Netflix e Paramount, emitiu uma nota endereçada a Arthur Lira, presidente da Câmara, apontando a falta de consenso em torno do texto e listando os riscos da regulação proposta.
Na sequência, o Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de São Paulo (Siaesp) e a Associação Brasileira da Produção de Obras Audiovisuais (Apro) divulgaram uma carta na qual defendiam a construção de uma única lei, que junte os dois PLs e, sobretudo, “atenda os interesses da sociedade civil e dos produtores independentes brasileiros e não da MPA”.
Logo depois, a Associação Brasileira das Produtoras Independentes (API), que congrega empresas menores – e que, em geral, não prestam serviços para as plataformas estrangeiras –, saiu em defesa do PL da Câmara, apontando o lobby das “gigantes estrangeiras”. “Não somos bilionários, mas somos muitos e defendemos a soberania brasileira, a indústria nacional e o audiovisual independente”, afirma o grupo.
Pelo que CartaCapital apurou, o Sindicato da Indústria Audiovisual (Sicav), do Rio, também defende a regulação originada na Câmara. Esse texto, além disso, teria o apoio velado da Globo por implicar numa menor tributação sobre o GloboPlay.
Ambos os projetos estruturam o que se pode chamar de tripé da regulação: a visibilidade para as obras brasileiras; o financiamento da produção local; e a questão dos direitos patrimoniais sobre séries e filmes feitos no Brasil.
O primeiro aspecto envolve tanto a proeminência, que significa a garantia de visibilidade para obras brasileiras, quanto as cotas que asseguram uma quantidade mínima de conteúdo brasileiro nos catálogos. O PL da Câmara prevê uma cota de 2% a 20%, escalonada, de acordo com a receita bruta. No outro PL, o teto da cota é de 5%.
O segundo tema, o do financiamento, passa tanto pela definição da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica (Condecine) a ser paga pelas plataformas quanto pelas possibilidades de investimento direto. No PL do Senado, as plataformas têm maior controle sobre o destino dos investimentos obrigatórios e a Condecine é de 3% sobre o faturamento; no da Câmara, os recursos passam pelo rito do sistema público de fomento e o porcentual é de 6%.
Fonte: Ancine
Por fim, tem-se o tema dos direitos, que envolve a titularidade e a propriedade patrimonial. Esse é, talvez, o ponto mais sensível. O PL da Câmara mantém intacto o conceito de “obra brasileira independente”, que significa, de forma simplificada, que apenas produções das quais uma empresa brasileira detém a maioria dos direitos cumpre cota ou pode ser beneficiada por incentivos fiscais. O PL do Senado dilui esse conceito. “Isso quebra as bases da nossa política”, argumenta Leonardo Edde, do Sicav.
Atualmente, os direitos patrimoniais dos originais das plataformas feitos no País pertencem a essas empresas. É o caso, por exemplo, de Senna, da Netflix. A Gullane Entretenimento figura como produtora, e recebeu créditos e dinheiro por isso, mas não poderá explorá-la comercialmente. Um dos objetivos da regulação, do ponto de vista da política pública, é induzir investimentos, por parte das plataformas, que resultem em propriedades patrimoniais de empresas brasileiras.
Ao longo do trâmite na Câmara, o MinC tentou inserir no texto as plataformas de compartilhamento, como TikTok e YouTube, e dar maior especificidade às cotas, para que elas espelhassem as políticas afirmativas e de regionalização. Isso, na visão de certos articuladores, fez com que as negociações andassem algumas casas para trás.
À falta de uma regulação, o que se tem visto, este ano, são os investimentos em originais do streaming escassearem e alguns projetos serem cancelados. “Vários países estabeleceram, nos últimos anos, regras de conteúdo e de investimentos. Onde essas empresas vão cortar? Obviamente, nos países onde o investimento não é obrigatório”, diz André Sturm, do Siaesp. “Sem lei do vídeo sob demanda, vai acabar a produção das plataformas no Brasil.”
O advogado Caio Mariano, que atende várias empresas do setor, é outro que tem presenciado, no dia a dia de seus clientes, esse recuo. “Existe, a meu ver, um desejo, pouco pragmático, de se ganhar essa disputa em todas as frentes. E isso dificilmente vai acontecer, até porque hoje nada passa pelo Congresso sem que se negocie com todas as frentes ali representadas”, diz. “Além disso, a produção independente está brigando com empresas como Meta, Google, entre outros players majors.” •
Publicado na edição n° 1313 de CartaCapital, em 05 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O que está em jogo’
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