CartaCapital
O paradoxo das maiorias
Boulos e Safatle encaram dilemas atuais e futuros das esquerdas brasileiras
A esquerda, em geral, é bastante ativa no momento de apontar o dedo para os adversários. Não faltam diagnósticos sobre as ameaças representadas pelo “fascismo”, pela “classe média reacionária”, pelos “ressentidos” que não aceitam o progresso inevitável da sociedade, e assim por diante. O inventário poderia ser longo. Bem menos intensa é a vitalidade quando o que está em questão é a reflexão sobre si mesma, isto é, sobre os seus próprios limites e, sobretudo, sobre o modo como tais insuficiências podem ter contribuído para a ascensão contemporânea da extrema-direita.
No estilo dos engenheiros de obra pronta, que sabem com exatidão, e antes do ocorrido, o que, quando e como fazer, boa parte das análises tendem a instrumentalizar a realidade apenas para a “comprovação” de princípios teóricos. Mais raros são os diagnósticos que mobilizam a teoria para compreender a realidade, sem medo de lidar com aquilo que desafia convicções arraigadas.
Eis aí razão suficiente para saudar a publicação, em 2025, de dois livros que, cada um à sua maneira, não hesitam em confrontar os principais dilemas atuais das esquerdas brasileiras e, de certa forma, mundiais. Pra Onde Vai a Esquerda?, de Guilherme Boulos, aborda o estado atual do progressismo brasileiro diante da força da extrema-direita e das pressões exercidas sobre o governo Lula pelo “mercado” e pelos setores mais conservadores da sociedade. A Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome, de Vladimir Safatle, é a reedição do livro originalmente publicado em 2012. Mas se enganará quem esperar pelo mesmo texto. Trata-se, na verdade, de “um novo livro”, em que “pouca coisa ficou como era”, nos termos do autor. Até porque, de lá até aqui, muita água correu por debaixo da ponte e a desarticulação da esquerda “se acelerou” ainda mais.
Filósofo de formação, Boulos destacou-se de início nas lutas por moradia, como liderança do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Desde que passou a integrar o PSOL, em 2018, candidatou-se a diversos cargos eletivos, inclusive à Presidência da República, naquele ano, e à prefeitura de São Paulo, em 2024. Foi eleito para a Câmara dos Deputados, em 2022, com a maior votação entre os postulantes do estado de São Paulo. Em outubro último, foi nomeado por Lula ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência.
Há convergências e divergências na reflexão dos dois autores
Safatle é um intelectual público, professor da Universidade de São Paulo, que se caracterizou pela tentativa de traduzir a filosofia em política e a política em filosofia. Igualmente militante do PSOL, foi candidato a deputado federal nas eleições de 2022, tendo ficado na suplência.
É em meio a esse engajamento político e intelectual que Boulos e Safatle redigiram estas e outras reflexões políticas, demarcando suas posições e, nesse processo, expondo suas coincidências e divergências. Se as convergências são fundamentais, e os colocam no mesmo lado do espectro político, as diferenças são igualmente relevantes, remetendo, entre outras coisas, aos debates no interior do PSOL sobre a atitude a ser adotada pelo partido em relação ao governo Lula.
Para Boulos, a mobilização popular contra a extrema-direita não se contrapõe à atuação institucional como ala esquerda da atual administração, razão pela qual aceitou de pronto o posto de ministro, com o objetivo de “colocar o governo na rua”. A construção de uma perspectiva nacional, democrática e popular passa, na sua visão, pela pressão para que este e outros governos tenham condições de aplicar as medidas progressistas de seus programas.
Boulos não vê um dilema entre a militância e a atuação institucional. Safatle propõe uma reflexão radical da esquerda contemporânea – Imagem: Cecília Bastos/USP Imagens e Zainone Fraissat/Folhapress
Após analisar, nos três primeiros capítulos, a “ofensiva da extrema-direita”, o “cerco” ao governo Lula, e a “guerra cultural”, respectivamente, Boulos reivindica, no quarto e último, um caminho para a esquerda sair da defensiva, tanto na “batalha digital pela opinião pública” quanto no “corpo a corpo nos territórios populares”. O ponto, para ele, não é a falta de “utopia”, mas da capacidade de traduzi-la para o século XXI. Para reverter esse quadro, a esquerda precisa encampar três “missões”: a social, voltada ao combate às desigualdades, a civilizatória, que se contrapõe às formas de autodestruição humana, incluindo a crise ecológica, e a ética, visando cultivar “valores humanos e solidários”.
E há, nesse caminho, dois “atalhos” a serem evitados: o “centrismo” e o “sectarismo”. Enquanto o primeiro, o mais pernicioso, prega a atenuação das reivindicações populares, a fim de não cutucar a onça fascista com vara curta, o segundo reivindica uma posição antissistema abstrata, fechada a qualquer negociação e/ou aliança política. Por caminhos distintos, ambas as perspectivas nos levam, na visão do autor, a um beco sem saída.
É possível que a carapuça do “sectarismo”, na perspectiva de Boulos, possa ser vestida por Safatle, mesmo sem menção direta. Uma coisa, entretanto, é questionar os efeitos políticos da reflexão do autor, o que é, evidentemente, legítimo. Outra diferente é enquadrá-la como sectária, como se imune fosse às contingências da política. Sem dúvida, estamos diante de uma perspectiva radical, ou melhor, que se radicalizou na última década, após a virada de 2013, como o próprio Safatle reconhece na introdução do livro. Radical porque não se furta à tentativa de penetrar nas raízes dos problemas. Mas isso não significa que o filósofo passe ao largo dos desafios políticos concretos que afligem as esquerdas contemporâneas, tampouco que se sirva da realidade apenas para repetir o que já sabia em teoria.
Atualmente, os opressores se apresentam como oprimidos e os enfáticos defensores do “sistema” se fazem de vítima
A proclamação de que “a esquerda morreu” constitui, nesse sentido, menos um atestado de óbito real do que um chamado à reconstrução. “Em certas situações, reconhecer-se morto é a única maneira de preservar a vida.” Tal como o crítico alemão Theodor Adorno, Safatle deseja provocar, não confortar. Ao estimular a reflexão, o incômodo nos afasta do sentimento moralmente apaziguante, mas politicamente contraproducente, de que, aconteça o que acontecer, estamos do “lado certo da história”.
Segundo o professor da USP, uma “esquerda que não teme dizer seu nome” precisa recolocar no centro da cena dois pilares fundamentais: a “igualdade radical” e a “soberania popular”, temas do primeiro e do segundo capítulo do livro. Somente essa perspectiva “universalista-concreta” pode alcançar a verdadeira liberdade. No limite, uma sociedade igualitária seria aquela “capaz de submeter tanto o trabalho quanto o desejo e a linguagem ao princípio da liberdade”.
Igualdade não significa, portanto, homogeneização. Significa, isto sim, ausência de hierarquias e sujeições, motivo pelo qual apenas um horizonte de igualdade pode favorecer o reconhecimento efetivo das diferenças, sem as transformar em marcadores de desigualdades. Os limites do chamado “identitarismo” não residem, assim, nas demandas (legítimas e necessárias) que trazem à tona. O problema aparece, para Safatle, quando as lutas por reconhecimento abandonam a perspectiva da soberania popular, enfatizando o desejo e a linguagem em detrimento da questão do trabalho, não obstante sua centralidade na sociedade capitalista.
A Esquerda. Que Não Teme Dizer Seu Nome. Vladimir Safatle. Planeta (112 págs., 51,90 reais)
Juntos, trabalho, desejo e linguagem, articulados pelo horizonte da soberania popular, configuram a classe como “operador de luta sempre em ampliação”. Separados, eles contribuem para a fragmentação dos dominados, restringindo as lutas a uma “lógica compensatória” de autodefesa e de preservação das fronteiras que definem as “identidades”.
Com isso, ao passo que a maior parte da esquerda, inclusive o governo Lula, se move nos limites da democracia representativa liberal – não incompatível com pitadas de diversidade –, a extrema-direita se apropria de uma dinâmica “insurrecional”. Ela se insurge contra um “sistema” do qual é, na realidade, um bote salva-vidas, num momento em que a exceção se torna cada vez mais a regra.
O paradoxo é notável, e é percebido pelos dois autores. Agora é a extrema-direita que reivindica a soberania popular (a “maioria silenciosa”), contrapondo-a ao “elitismo” das “minorias” e de seus intelectuais. O resultado é a inversão simbólica do significado da opressão: os opressores se apresentam como oprimidos, os mais enfáticos defensores do “sistema” se apresentam como suas vítimas.
No fim das contas, talvez os distintos níveis de radicalidade dos autores se vinculem ao horizonte temporal diferente com o qual cada um opera. Safatle não se desgruda do presente, mas pensa igualmente com a cabeça no futuro. Boulos, embora também olhe para a frente, o faz sob forte impacto das pressões conjunturais do momento atual.
Pra Onde Vai a Esquerda? Guilherme Boulos. Contracorrente (143 págs., 35 reais)
Não se trata, entretanto, nem para um nem para o outro, de definir abstratamente o que a esquerda deveria ter feito e, agora, o que deve fazer, como se ela não atuasse em situações históricas e políticas determinadas. Cabe a uma “utopia concreta”, como diria o filósofo alemão Ernst Bloch, respeitar as “possibilidades objetivas” da época. Mas cabe a ela também contribuir para ampliar o campo do possível, transformando o que hoje parece improvável em um projeto credível, ainda que no médio ou no largo prazo.
Desta tarefa, Boulos e, sobretudo, Safatle, não se distanciam. Eles analisam como as coisas são e, ao mesmo tempo, como e por que elas ainda não são o que poderiam ser.
Divergências à parte, ambos nos ajudam, assim, a resistir no presente imaginando um novo futuro, imaginação sem a qual ficaremos a reboque da ofensiva política e ideológica imposta pela extrema-direita. •
*Fábio Mascaro Querido é professor de Sociologia da Unicamp.
Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O paradoxo das maiorias’
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