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O fantasma de Eldorado

O MPF investiga ações de intimidação da polícia e atuação de milícias rurais contra assentamentos no estado

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Zap. Fazendeiros se mobilizaram por meio de aplicativos de mensagens para repelir ocupações do Abril Vermelho – Imagem: Tarcísio Nascimento/MST-RJ
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Aguardado com temor por conta de um cenário inflamável que mistura o recrudescimento da violência no campo, o avanço das pautas ruralistas na Câmara e a insatisfação do MST com a política agrária do governo, o Abril Vermelho chega à sua última semana sem que tenham ocorrido episódios graves de enfrentamento, mesmo com as 32 ocupações já registradas em 15 estados. No entanto, relatos de intimidações e ameaças feitas de forma sistemática pela Polícia Militar contra trabalhadores rurais assentados no município fluminense de Campos dos Goytacazes indicam uma perigosa tendência de perseguição ao movimento por parte de governos estaduais bolsonaristas, como o de Cláudio Castro. O Ministério Público Federal já enviou às secretarias estaduais de Segurança Pública e de Polícia Militar ofícios solicitando providências e explicações sobre o caso que envolve um vereador e uma entidade do agro presidida pelo vice-prefeito da cidade.

A ação do MPF ocorre após uma denúncia apresentada pelo Núcleo de Assessoria Jurídica Popular da UFRJ. A partir de testemunhos colhidos no local, o documento elenca diversas “abordagens policiais agressivas e tentativas de intimidação contra membros de movimentos sociais”. A presença ostensiva da PM em torno dos assentamentos Josué de Castro, Dandara dos Palmares e Antônio de Farias se fez notar desde o início do mês. Teve seu ápice durante uma “atividade de conscientização agrária” organizada pelo MST, quando viaturas da polícia entraram nos assentamentos e um helicóptero fez voos rasantes que assustaram os participantes do evento. Tudo foi registado em áudio e vídeo pelos assentados e enviado ao MPF.

Assentados do Josué de Castro relataram a CartaCapital que o cerco policial começou após a montagem de barracas de lona por trabalhadores sem-terra dentro do assentamento, fato que levou os fazendeiros a temer novas ocupações de terra na região. Estes pediram ajuda à PM, que manteve viaturas estacionadas na porteira do assentamento, em ações que se sucederam ao longo do mês. Na mais recente, na terça-feira 23, viaturas foram vistas fazendo ronda e policiais tiraram fotos das pessoas que entravam no assentamento. Mesmo sem decisão judicial, a PM tentou também, segundo o relato, impedir as reuniões da associação que administra a comunidade e chegou a manter focos de luz voltados para sua sede durante toda a noite. No dia 6 de abril, quando foi utilizado o helicóptero, o aparelho voava parado a poucos metros dos telhados das casas: “Foi um clima de terror”, resumem os assentados, que pediram para não ter seus nomes revelados.

Insufladores. Vice-prefeito de Campos, Frederico Paes diz acompanhar a situação “sem intervir”. O alerta de “invasões” foi disparado pelo vereador Beto Abençoado – Imagem: Redes sociais

Segundo a denúncia apresentada ao MPF, a polícia teria sido acionada pelos fazendeiros após o envio de um áudio no qual o vereador Beto Abençoado, do Solidariedade, alerta sobre a possibilidade de novas ocupações: “Eles estão com a onda de invasões de terra por esta semana, então é importante nós estarmos se comunicando (sic) com os vários grupos que têm por aí para a gente se unir nessa questão e estar falando um com o outro”. No áudio, o parlamentar afirma “já ter falado com as autoridades” para pedir ajuda: “Alertei sobre essa questão. Eles estão para invadir cinco ou seis fazendas, então é importante conversar com os amigos que têm terra na região. Vamos ficar todos de alerta”. Procurado pela reportagem, Abençoado não deu retorno até o fechamento desta edição.

O vice-prefeito de Campos, Frederico Paes, também é citado na denúncia como “pessoa interessada em reprimir os movimentos sociais”. Ele é presidente da Cooperativa Agroindustrial do Rio de Janeiro, a Coagro, cujas fazendas estariam na mira do MST. “A área sob interdito tem como um dos sócios o vice-prefeito de Campos dos Goytacazes, gestando, portanto, maior grau de preocupação quanto à quebra da linha entre os interesses públicos, cujo papel é de resguardo dos agentes públicos, como os integrantes da Polícia Militar, e os interesses privados de integrantes do Poder Público, que não podem e não devem se valer desse status para o uso de agentes públicos sob seu comando”, diz o documento enviado ao MPF.

A CartaCapital Paes afirmou não ter conhecimento da denúncia e rechaçou qualquer responsabilidade pela ação policial: “O governo municipal acompanha, sem intervir, em matéria que compete a outras esferas de governo, bem como ao Judiciário, respeitando os limites dos marcos legais vigentes”. Ele diz que a prefeitura tem atuado no apoio “a agricultores familiares, legalmente assentados e regularizados pelo Incra”, mas que é contrário às ocupações. “O município não apoia, na medida em que a invasão de terra é crime previsto na legislação vigente. Somos a favor da reforma agrária. O direito à terra é legítimo, desde que obedecido o processo legal.” Quanto à Coagro, o vice-prefeito ressalta tratar-se de uma cooperativa de produtores rurais que existe há 21 anos: “Temos mais de 10 mil cooperados, sendo 85% micro e pequenos produtores. Temos em nosso quadro de cooperados muitos assentados da região, que produzem e entregam a produção para a nossa cooperativa”.

Assentados relatam que a PM chegou a fazer voos rasantes de helicóptero sobre os telhados das casas

Entretanto, em ofício enviado pelo MPF ao comando da PM fluminense, o procurador regional adjunto dos Direitos do Cidadão, Júlio José Araújo Júnior, observa: “A alegação de que toda e qualquer ação seja voltada ao combate de invasores e/ou criminosos não parece ter legitimidade ou legalidade. A jurisprudência dos tribunais superiores há muito assentada entende que a ocupação de terras para reivindicar a execução da política pública de reforma agrária não constitui crime”. O procurador acrescenta que, “diante de um direcionamento da atuação policial para um aparente sufocamento de assentamentos rurais e movimentos de luta pela terra, deve-se avaliar a legalidade da atuação estatal, bem como eventuais infrações penais e disciplinares”.

A deputada estadual Marina dos Santos, do PT, mais conhecida como Marina do MST, lamenta a postura do governo estadual: “Existia uma área do assentamento Josué de Castro sendo utilizada por um latifundiário com seu gado e nenhuma movimentação foi feita para evitar que uma terra pública fosse usada para pastagem. Agora, quando as famílias assentadas se reuniram para pensar em cooperativas, produção e comercialização, em créditos de fomento e meios de exigir políticas públicas no território, aí sim há tentativas de constranger e coagir com dezenas de viaturas e helicópteros”.

Superintendente do Incra no Rio, Maria Lúcia de Pontes afirma que o órgão enviou ofícios pedindo explicações ou providências ao governo do estado, à Defensoria Pública da União e ao MPF. Uma reunião com o secretário de Segurança Pública, Victor Cesar dos Santos, será agendada para os próximos dias. O Incra diz que, “desde quando se intensificaram os relatos de intervenções em projetos de assentamento, tem realizado várias diligências no sentido de contribuir para a solução pacífica de possíveis conflitos e salvaguardar os direitos humanos”. Três servidores foram destacados para acompanhar in loco a situação nos assentamentos de Campos dos Goytacazes.

Reforma agrária. O ministro Paulo Teixeira se comprometeu a assentar 45 mil famílias de 2024 a 2026 – Imagem: Arquivo/MDA

Integrante da executiva municipal do PT em Campos, Gilberto Gomes acompanha o caso pelo partido. Ao tentar entrar em um assentamento na região e ser parado pela PM, ele ouviu do comandante da operação, em áudio gravado, que os sem-terra estavam sendo “monitorados para evitar invasões de propriedades” e que “provavelmente teve uma denúncia para o serviço reservado de inteligência da polícia”. Para Marina do MST, a maior preocupação é que existam “retrocessos democráticos” e na política pública de reforma agrária: “Afinal, as milícias rurais – e agora a polícia – têm agido a partir de proposições ilegais e ações concretas que ameaçam um projeto político construído a partir de muita luta dos movimentos sociais no País”.

Em recente entrevista ao programa Poder em Pauta, do canal de ­CartaCapital no YouTube, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, prometeu intensificar o programa de reforma agrária, que estava praticamente paralisado nos governos Temer e Bolsonaro, para “superar as mortes e a pobreza no campo”. De 2017 a 2022, o governo federal ­assentou, em média, 5 mil famílias por ano. Somente no ano passado, Lula atendeu 50 mil famílias e a meta é beneficiar outras 245 mil entre 2024 e 2026. •

Publicado na edição n° 1308 de CartaCapital, em 01 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O fantasma de Eldorado’

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