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O êxtase das coisas

A reunião de 180 fotografias de Hans Gunter Flieg, de 100 anos, desvela o sonho industrializante do País

O êxtase das coisas
O êxtase das coisas
Precisão. A construção do Ginásio do Ibirapuera (à esq.), em 1955, e o interior do Moinho Jaguaré, em retrato de 1956, são exemplares de sua busca pelo rigor formal – Imagem: Hans Gunter Flieg/IMS
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Hans Gunter Flieg tinha 16 anos quando foi obrigado a se mudar com a família para o Brasil. O ano era 1939 e, com o início da Segunda Guerra Mundial, sua Alemanha natal não era um lugar seguro para um judeu como ele viver.

Na condição de refugiado em uma São Paulo em franca ascensão econômica, o jovem viu a fotografia industrial e publicitária – que despontou a partir de ­meados dos anos 1940 – como uma forma de pagar as contas.

O senso estético apurado e o rigor formal fizeram, porém, com que seus registros dos produtos e bastidores de empresas como Pirelli, Mercedes-Benz e Nadir Figueiredo se tornassem símbolos de um país esperançoso por ser visto como ícone de modernidade.

Esse imaginário construído ao longo de 40 anos de carreira conduz a exposição Flieg. Tudo Que É Sólido, aberta no Instituto Moreira Salles (IMS), em São Paulo, na terça-feira 22. Trata-se tanto de celebrar os 100 anos do fotógrafo, completados em julho, quanto de revisitar sua obra em um momento histórico no qual vigoram relações produtivas e trabalhistas bem diferentes de outrora. Vem daí o título da mostra, alusão à célebre frase de Karl Marx no Manifesto do Partido Comunista (1848).

“Flieg nos faz refletir sobre o quanto esta cidade que se quis moderna conseguiu lidar com questões mais profundas”, diz o curador Sergio Burgi, coordenador de fotografia do IMS. “Essas questões ganham especial relevância no contexto contemporâneo, em uma sociedade pós-industrial, baseada em algoritmos e comunicação digital, na qual os produtos continuam sólidos, mas os elementos da cultura desmancham no ar.”

Desde 2006, a instituição guarda cerca de 35 mil imagens em preto e branco produzidas pelo fotógrafo, que aprendeu os princípios da linguagem na Alemanha com Grete Karplus, do Museu Judaico de Berlim. No Brasil, seu senso de observação foi burilado por meio do contato com revistas como a Life, e seus conhecimentos técnicos foram aprofundados com os livros de Paul Wolff, propagador da câmera Leica de 35 mm, responsável pela popularização do registro em série.

Outras influências que se somam a essa bagagem reverberam os ecos de movimentos do início do século XX, por ele presenciados quando ainda vivia na Europa. É o caso da Bauhaus, em sua exaltação à forma e funcionalidade dos objetos, e da Nova Objetividade Alemã, na defesa da fotografia como a forma mais potente de materializar o mundo.

‘Flieg nos faz refletir sobre o quanto esta cidade que se quis moderna conseguiu lidar com questões mais profundas’, diz Burgi

Tudo isso ganha corpo, por exemplo, na precisão com a qual Flieg lida com os elementos presentes na composição do quadro ou mesmo na forma como sublinha as melhores características de um objeto em jogos de claro e escuro.

A exposição no IMS destaca esses aspectos em 180 registros selecionados sob a supervisão do fotógrafo, que vive recluso. Eles foram divididos em três eixos temáticos, possibilitando um panorama de suas principais áreas de atuação.

O primeiro faz um mergulho em trabalhos realizados dentro de fábricas, ressaltando linhas e formas do maquinário industrial da época, como se vê na foto de operários ofuscados pela dimensão escultórica dos equipamentos da Indústria Elétrica Brown Boveri ou nas curvas e texturas das tubulações do interior das instalações do Moinho Jaguaré.

Já o foco do segundo segmento é a arquitetura industrial, com a documentação de prédios icônicos para a sociedade paulista da época, entre os quais o Ginásio do Ibirapuera, a sede do Masp e a fábrica da Biscoitos Duchen, em Guarulhos, construída com base em um projeto de Oscar Niemeyer (1907-2012).

A publicidade é o coração do terceiro eixo, voltado aos “retratos” de produtos. Neles, pneus, ferramentas, máquinas de escrever e jarras de vidro são apresentados como itens a ser admirados e desejados por si só, sem qualquer artifício. Como diz Burgi, é como se Flieg buscasse o “êxtase das coisas”.

“Essas imagens vão se descolando da sua condição documental para adquirir um papel mais amplo de reflexão sobre o processo de representação do mundo”, diz curador. Foi assim que a obra de Flieg começou a ser encarada também como trabalho artístico.

Esses novos sentidos convivem lado a lado com uma produção pautada, em princípio, por demandas meramente comerciais e cujo resultado era imprescindível para manter ativa uma carteira de clientes desejosos de ter seus negócios chancelados pela força da imagem.

“A imagem é essencial no processo de viabilização daquele ciclo econômico na medida em que leva à realização do consumo”, diz Burgi. “Mas Flieg construía isso com grande refinamento. Esta exposição é uma homenagem à qualidade dessa produção e nos lembra que fotografia é sempre documento, história e linguagem.” •

Publicado na edição n° 1274 de CartaCapital, em 30 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O êxtase das coisas’

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