CartaCapital
O espírito do algoz
A destruição da vida em Gaza não comove os opiniáticos da mídia brasileira


Leio no jornal O Globo: “Os mísseis caem sobre nós. Quanto tempo mais um ser humano pode suportar?”, disse Aiman Abu Shamali, que perdeu a mulher e a filha em um atentado a bomba em Zawaida, no centro de Gaza. “As pessoas no norte estão morrendo de fome e nós aqui estamos morrendo por causa dos bombardeios”, disse ele.
Em carta enviada a The New York Times nos idos de 1948, Albert Einstein e Hannah Arendt deploraram o comportamento do recém-criado Estado de Israel: “Entre os fenômenos políticos mais perturbadores de nossos tempos está o surgimento no recém-criado Estado de Israel do ‘Partido da Liberdade’ (Tnuat Haherut), um partido político muito parecido em sua organização, métodos, filosofia política e apelo social aos partidos nazistas e fascistas. Foi formado a partir da adesão e seguimento do antigo Irgun Zvai Leumi, uma organização terrorista, de direita e chauvinista na Palestina”.
A destruição da vida em Gaza não move e, muito menos, comove os opiniáticos da mídia brasileira. Ocupam-se em desmerecer as palavras certeiras do presidente Lula a respeito do massacre perpetrado pelo Estado de Israel na Faixa de Gaza.
Desde a criação de Israel, a expansão colonial no território palestino guia as políticas de Estado – Imagem: Biblioteca do Congresso/EUA
Peço licença para recorrer ao relatório da Human Rights Watch publicado em 2021: “Várias suposições amplamente aceitas, incluindo que a ocupação é temporária, que o ‘processo de paz’ em breve porá fim aos abusos israelenses, que os palestinos têm controle significativo sobre suas vidas na Cisjordânia e em Gaza, e que Israel é uma democracia igualitária dentro de suas fronteiras, obscureceram a realidade do governo discriminatório arraigado de Israel sobre os palestinos. Israel manteve o domínio militar sobre parte da população palestina por todos os meses de seus 73 anos de história. Isso foi feito sobre a grande maioria dos palestinos dentro de Israel entre 1948 e até 1966. De 1967 até o presente, governou militarmente os palestinos nos Territórios Ocupados da Palestina (OPT), excluindo Jerusalém Oriental. Em contraste, desde a sua fundação governou todos os israelenses judeus, incluindo colonos no OPT desde o início da ocupação em 1967, sob sua lei civil de direitos”.
A organização prossegue: “Nos últimos 54 anos, as autoridades israelenses facilitaram a transferência de israelenses judeus para os OPT e concederam-lhes um status superior sob a lei em comparação com os palestinos que vivem no mesmo território, quando se trata de direitos civis, acesso à terra e liberdade de mover, construir e conferir direitos de residência a parentes próximos. Embora os palestinos tenham um grau limitado de autogoverno em partes dos territórios ocupados, Israel mantém o controle primário sobre as fronteiras”.
Mais: “A anexação unilateral de partes adicionais da Cisjordânia, que o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu prometeu realizar, formalizaria a realidade de dominação e opressão israelenses sistemáticas que há muito prevalecem sem mudar a realidade de que toda a Cisjordânia é território ocupado sob o direito internacional de ocupação, incluindo Jerusalém Oriental, que Israel anexou unilateralmente em 1967”.
Israel exerce uma dominação e opressão sistemática na Palestina, aponta a Human Rights Watch
Diante desse espetáculo desumano e deprimente, lembrei-me de Isaac Deutscher. Ao escrever O Judeu Não-Judeu, Deutscher buscou em Baruch Espinosa o exemplo do pensador independente e iniciador da crítica moderna à Bíblia. O filósofo desvendou a contradição entre o Deus monoteísta e universal e o cenário em que esse Deus aparece na religião judaica, como um Deus ligado a um único povo, a contradição entre o Deus universal e o seu “povo escolhido”. A realização dessa contradição trouxe a Espinosa o banimento da comunidade judaica e a excomunhão. Ele teve de lutar contra o clero judaico. Vítima da Inquisição, o clero judaico infectou-se com o espírito da Inquisição.
Na condenação das palavras de Lula a respeito das semelhanças entre o extermínio dos palestinos e o Holocausto, reencontramos o fenômeno da contaminação da vítima pelo espírito do algoz. Há desconforto em vislumbrar a reiteração desse fenômeno conhecido como Síndrome de Estocolmo. A síndrome define a empatia da vítima capturada por seus captores. Ao longo do tempo, algumas vítimas passam a desenvolver sentimentos positivos em relação aos seus captores. Eles podem até começar a sentir como se compartilhassem objetivos e causas comuns.
Espinosa escapou de seus captores e teve a grande felicidade intelectual de poder harmonizar as influências conflitantes e criar a partir delas uma visão mais elevada do mundo e uma filosofia integrada. Em muitas gerações, os intelectuais judeus foram colocados nas convergências entre as várias culturas e, assim, pugnaram consigo mesmos e com os problemas de seu tempo.
Seriam Arendt e Einstein antissemitas? – Imagem: Biblioteca do Congresso/EUA e Gunther Adler/Munchner Stadmuseum
O judeu Karl Marx fez intensa oposição ao atraso social e espiritual da Alemanha de seu tempo. Exilado a maior parte de sua vida, seu pensamento foi moldado pela filosofia alemã, pelo socialismo francês e pela economia política inglesa. Em nenhuma outra mente contemporânea influências tão diversas se encontraram de forma tão frutuosa. Marx superou a filosofia alemã, o socialismo francês e a economia política inglesa. Absorveu o que havia de melhor em cada uma dessas tendências e transcendeu as limitações de cada uma.
As considerações de Isaac Deutscher provocaram movimentos em meus inquietos botões. A diversidade de situações regionais e de experiências históricas vividas pelo povo judeu concedeu-lhe as bênçãos do universalismo. Freud pertence à mesma linha intelectual. Em seus ensinamentos, ele transcende as limitações das escolas psicológicas anteriores. O homem que ele analisa não é um alemão, ou um inglês, um russo ou um judeu – é o homem universal, no qual lutam o subconsciente e consciente, o homem que faz parte da natureza e parte da sociedade, o homem cujos desejos, escrúpulos e inibições, ansiedades e dificuldades são essencialmente os mesmos, não importa a raça, a religião, ou a nação a que ele pertence. Do seu ponto de vista, os nazistas estavam certos quando associaram o nome de Freud ao de Marx e queimaram os livros de ambos.
O universalismo dos grandes pensadores judeus não poupou Albert Einstein. No livro Como Vejo o Mundo, o cientista discorre sobre o universalismo necessário. “O homem procura, de forma adequada às suas necessidades, formar uma imagem do mundo, clara e simples, e assim triunfar sobre o mundo da existência, esforçando-se por substituí-lo, até certo ponto, por esta imagem, e assim agir, cada um à sua maneira, o pintor, o poeta, o filósofo especulativo, o naturalista”, escreve. “Ele faz desta imagem e da sua conformação o centro de gravidade da sua vida sentimental, para procurar nela a calma e a solidez que o ilude no círculo demasiado estreito da sua existência pessoal e rodopiante.” •
Publicado na edição n° 1299 de CartaCapital, em 28 de fevereiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O espírito do algoz’
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