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O escudeiro e a Corte

Plano B de Bolsonaro para o STF, Augusto Aras vive tensão inédita com o Tribunal e traça planos sucessórios

Quando é para atazanar Aras, Moraes não perde a viagem. Por isso, a quebra do sigilo do inquérito do “golpe”. (FOTO: Andressa Anholete/Getty Images/AFP, Sérgio Lima/AFP e Marcos Oliveira/Ag. Senado)
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Jair Bolsonaro e o senador Davi Alcolumbre conversaram recentemente sobre a vaga que se abrirá em 12 de julho no Supremo Tribunal Federal, com a aposentadoria de Marco Aurélio Mello. Rolou um “climão”. O indicado do presidente para a Corte terá de ser, como de costume, sabatinado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, comandada por Alcolumbre. Este teria sido bem claro, conforme corre no círculo presidencial em Brasília: não marcará sabatina nenhuma se o escolhido for André Mendonça, advogado-geral da União. Evangélico, Mendonça é um dos favoritos, o preferido de pastores governistas como Silas Malafaia. Bolsonaro teria ficado uma fera com Alcolumbre e mostrado que pagará para ver. Mas, por via das dúvidas, teria mandado o “reserva” se aquecer à beira do campo.

O plano B sonha com o Supremo dia sim, outro também. Seu currículo de serviços a Bolsonaro rivaliza com aquele de Mendonça, que é formalmente pago (muito bem, por sinal, salário bruto de 45 mil reais) para advogar pelo governo. Sua atuação é tão chapa-branca que juízes do próprio Supremo, Alexandre de Moraes à frente, o submetem a constrangimentos sempre que podem e nunca se viu na relação da Corte com a Procuradoria-Geral da República. Sim, falamos de Augusto Aras, cujo mandato na PGR acaba em setembro. É ele o sujeito de sobreaviso.

O Senado torce o nariz para André Mendonça no Supremo. Seria a chance de Aras?

Aras teria até preparado o terreno para o presidente indicar uma auxiliar fiel dele, Aras, como nova “xerife”. É a subprocuradora-geral Lindôra Araújo, uma bolsonarista tida como um perigo para a oposição em 2022. Ela lidera investigações contra governadores na pandemia, nomes que a tropa presidencial na CPI da Covid quer infernizar. Lindôra, comenta uma colega da ativa, pode eventualmente fustigar a oposição, mas também terá trabalho internamente. “Ela, que critica a discussão sobre a desigualdade de gênero, vai sentir o quanto é difícil ser mulher procuradora-geral numa instituição masculina e machista”, diz a fonte. Talvez por isso corra por fora, como alternativa à “xerife”, Humberto Jacques de Medeiros, vice de Aras.

Se Aras não for para o Supremo agora, iria em 2023, no lugar de Ricardo Lewandowski, em caso de reeleição de Bolsonaro, arranjo que estaria combinado. O procurador-geral, conta um colega aposentado, tem dito nos bastidores que paga um preço alto na carreira por ter se alinhado a Bolsonaro. E que, se não for para o Supremo, estaria, digamos, lascado no Ministério Público e ao alcance de perseguições. No tribunal que cobiça, está mesmo “lascado”. O que mais tem incomodado os ministros da Corte, anota um conhecedor da casa, é a “mercantilização” do cargo de procurador-geral em troca de uma toga. Tradução: Aras protegeria Bolsonaro à espera de recompensa. O tribunal, prossegue o observador, tem estado bem unido, e talvez apenas nesse tema, quanto às investigações dos chamados “atos antidemocráticos”, as manifestações encabeçadas em 2020 por Bolsonaro, em 19 de abril, o Dia do Exército, com ameaças e ataques ao STF e ao Congresso. A abertura desse inquérito foi solicitada por Aras ao Supremo, que só agiu, ao que consta, por pressão da Corte.

Fakhoury, o rentista, sonha com a intervenção militar. (FOTO: Zanone Fraissat/Folhapress)

A mira do “xerife” não estava, no entanto, apontada para o presidente, mas para os financiadores dos atos e uns bagrinhos parlamentares que engrossaram o coro golpista. Há cerca de um mês, o ex-xerife Claudio Fonteles, três ex-subprocuradores-gerais (Álvaro Augusto Ribeiro da Costa, Paulo de Tarso Braz Lucas e Wagner Gonçalves) e um ex-juiz, Manoel Volkmer de Castilho, pediram a Alexandre de Moraes, o relator do inquérito, a inclusão de Bolsonaro no rol de investigados. Inclusive, por fatos posteriores aos atos, como ameaçar usar o Exército contra as medidas anti-Coronavírus de estados e prefeituras. “Os fatos desse inquérito são gravíssimos, mas o procurador-geral está inerte, só atua na periferia, não vai ao presidente”, afirma Fonteles.

Segundo ele, “não resta dúvida, o quadro é de absoluta omissão” de Aras. Mais: “No radar, começa a soar uma possível prevaricação”. Prevaricar é crime de agente público, descrito no artigo 319 do Código Penal: “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. Um subprocurador-geral na ativa acredita que, na pandemia, Aras retardou ou deixou de praticar atos relacionados a Bolsonaro. Quando abriu inquérito sobre a carnificina amazônica de janeiro, mirou só o então ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello. E ainda divulgara nota a declarar, em linguagem menos direta, que não contassem com ele para fustigar o presidente. Só em fevereiro resolveu instaurar “averiguações preliminares” a respeito de Bolsonaro.

Allan dos Santos, blogueiro e conspirador. (Foto: Mateus Bonomi/Agif/AFP )

Quem aponta omissão do “xerife” e possível prevaricação toma processo. Aconteceu com o professor de Direito da USP Conrado Hubner, para quem “averiguações preliminares” seriam uma forma de Aras dar satisfação à plateia. Em maio, Hubner foi alvo de uma reclamação na Comissão de Ética da USP e de queixa por calúnia, injúria e difamação, propostas por Aras. No Twitter e na Folha de S.Paulo, Hubner chamou-o de “poste-geral da República” e “servo do presidente”. “Ele processa para intimidar a crítica. Acha que uma autoridade como o presidente da República tem liberdade de expressão para defender intervenção militar, e para violar a lei e não usar máscara. Mas acha que um cidadão não tem liberdade de criticar omissão de uma autoridade por meio de ironia”, afirma.

Satanizado pelo bolsonarismo, presidente do Tribunal Superior Eleitoral na futura eleição, o ministro Moraes tem exposto o governismo de Aras. É na condição de relator de processos delicados para o governo, como o dos atos antidemocráticos, o da interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal, o da operação contra o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o das milícias digitais.
No inquérito que une o Supremo como nenhum outro, o dos atos antidemocráticos, Moraes tirou o sigilo em 4 de junho. Foi no dia em que Medeiros, o vice de Aras, pedira ao tribunal para arquivar a investigação sobre 11 parlamentares bolsonaristas, entre eles a deputada Bia Kicis, do PSL do Distrito Federal, defensora de retomar a idade de 70 anos para aposentadoria dos juízes do STF, o que facilitaria a vida de Bolsonaro para aparelhar a Corte. No pedido de arquivamento, Medeiros disse sem rodeios que a Procuradoria estava insatisfeita com as investigações feitas pela PF.

Claudio Fonteles: “O quadro é de absoluta omissão”

Ao tirar o sigilo, Moraes permitiu vir a público um relatório da PF de 1.023 páginas. O documento descreve, por exemplo, as relações carnais com o Palácio do Planalto por parte de um blogueiro, Allan dos Santos. Este fugiu do Brasil, quando Moraes havia autorizado busca e apreensão contra vários investigados, em junho de 2020. Autorizado contra a posição de Aras, registre-se. Segundo os federais, Santos teria sido um dos organizadores dos atos pró-ditadura. A casa dele em Brasília seria uma espécie de QG golpista. O blogueiro, inclusive, intermediaria a nomeação em cargos federais. Tudo muito bem remunerado com verba federal de propaganda.

Outro bolsonarista citado pela PF é o empresário Otávio Fakhoury. Em conversa com Bia Kicis em 22 de maio de 2020, ele comentou, a propósito dos magistrados supremos: “Canalhas. Olha, vai ser muito difícil terminar esse governo sem entrar de cabeça numa guerra institucional contra eles, porque eles é que invadem o Executivo”. Em 10 de junho, Fakhoury pediu a Moraes a volta do sigilo. Em vão. O juiz ainda não aceitou arquivar o processo, como quer a Procuradoria. Em 7 de junho, cobrou de Medeiros esclarecimentos sobre a vontade de engavetar. É como se a Justiça pusesse em dúvida o trabalho e as intenções da Procuradoria. “Medeiros é o longa manus de Aras”, diz Fonteles. Tradução: executor de ordens.

No embate com Aras, Moraes conta com delegados da PF inconformados desde a saída de Sergio Moro do governo. O juiz cuida do inquérito sobre interferência política na PF, apuração nascida a pedido de Aras após a queda de Moro do Ministério da Justiça, em abril de 2020. A intenção de fundo do “xerife” não era, porém, saber se Bolsonaro cometera crime, e sim se Moro cometera, ao acusar o presidente de interferência. Moraes prorrogou a investigação por 90 dias em abril e está pronto para levar ao plenário do Supremo a decisão sobre Bolsonaro depor perante um delegado. O presidente queria se defender por escrito, agora nem isso. Topa que a apuração termine sem que ele fale. Claro, dá para imaginar qual será a conclusão da Procuradoria. Detalhe: em dezembro, Aras disse ao Supremo não ver problema no silêncio presidencial.

A depender de Aras, o ministo Salles vai continuar a sorrir. (FOTO: Lula Marques/PT na Câmara)

A investigação a respeito de Salles é outra com a qual Moraes fustiga Aras. A operação da PF contra o ministro por suspeita de corrupção pró-madeireiros ilegais, a Akuanduba, foi a campo em 19 de maio sem que o procurador-geral soubesse antes. Tudo fora acertado entre Moraes e delegados. Aliás, a operação surgiu em um processo que o ministro do STF arquivara, a pedido de Aras, em outubro de 2020. Só após a operação, que vasculhou endereços de Salles, é que deveria ser dada “imediata ciência à Procuradoria-Geral da República”, escreveu o togado. Uma semana depois, o juiz tirou o sigilo do caso, como logo faria no inquérito dos atos antidemocráticos. Uma forma de alimentar o noticiário e, assim, embaraçar o investigado e o “xerife”.

O ministro Moraes deixou claro que não pretende arquivar o inquérito dos atos antidemocráticos

Graças a Salles, a ministra Cármen Lúcia também expôs o governismo da Procuradoria. A magistrada cuida de outro processo a envolver o ministro e madeireiros ilegais, surgido de queixa-crime feita em abril pelo então chefe da PF no Amazonas, Alexandre Saraiva. Mandou a queixa à Procuradoria, uma práxis, para providências. Em 31 de maio, recebeu resposta, assinada por Medeiros: que fosse aberto inquérito. Estranhamente, o longa manus de Aras deixara de fora o presidente afastado do Ibama, Eduardo Bim, atingido pelas acusações de Saraiva. Cármen Lúcia autorizou em 2 de junho a investigação e cobrou que a Procuradoria, “com máxima urgência, manifeste-se sobre a condição processual de Eduardo Bim”. Só então este virou alvo.

Carmén Lúcia também aperta o procurador-geral. (Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR)

A juíza tinha cutucado o próprio Aras, quando se viu diante de uma requisição partidária para que se apurasse a existência de uma “Abin paralela” colocada a serviço do senador Flávio Bolsonaro, aquele das “rachadinhas”. Em despacho de 18 de dezembro, tinha dado ao procurador-geral 30 dias para informar sobre as providências tomadas, um fato raro, para não dizer inédito. Aras respondeu no fim do prazo.

Dizia ter notificado o jornalista autor de reportagem sobre a Abin paralela pró-Flávio, para que o repórter contasse o que sabia. Só depois talvez ouvisse as advogadas do senador, as quais haviam conversado com Bolsonaro sobre o que o governo poderia fazer pelo rapaz. O partido Rede viu uma “tentativa de intimidar jornalistas” por parte de Aras. Em 27 de maio, a ministra requereu explicações da Procuradoria.

Edson Fachin é mais um no Supremo que tenta empurrar Aras ao trabalho. Foi o autor da liminar que suspendeu operações policiais em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia. Após a chacina policial no Jacarezinho, em 6 de maio, recebeu um vídeo do massacre. Encaminhou-o a Aras, pois, além de ser fiscal da lei, o Ministério Público tem o dever institucional de controlar a polícia. Fachin dizia ver indícios de “execução arbitrária” e pedia providências ao “xerife”. “Solicito que mantenha este Relator informado das medidas tomadas e, eventualmente, da responsabilização dos envolvidos nos fatos constantes do vídeo”, escrevera.

Os embates recentes entre a Procuradoria e o Supremo, comenta o subprocurador-geral aposentado Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, mostram que Aras “perdeu completamente a independência (em relação ao governo)”, que há “tensão e desconfiança” no tribunal em relação ao “xerife” e “total desprestígio” do Ministério Público Federal na Corte. “Isso vem também sendo observado dentro da Casa e os integrantes (do MPF) temem um estrago de longo prazo na capacidade de atuação do órgão, com seu desprestígio e dispensabilidade de sua intervenção em medidas sensíveis a direitos”, diz Aragão.

Em breve saberemos se o esforço de Aras será recompensado por Bolsonaro.

Publicado na edição nº 1162 de CartaCapital, em 17 de maio de 2021.

Outro lado:

Em nota enviada posteriormente à publicação da matéria a CartaCapital, Otavio Fakhoury diz:

“Em relação à matéria O  escudeiro e a Corte, informo que nunca, em tempo algum, fui a favor e tampouco patrocinei manifestação alguma a favor de intervenção militar. Em primeiro lugar, em todas as minhas conversas e comportamentos, sempre mostrei o que sou: um democrata. Em segundo, num diálogo registrado no Inquérito 4828, onde a matéria se baseou, foi meu interlocutor que citou essa questão e eu apenas informei o que poderia ocorrer. E, num outro ponto, sobre o patrocínio que fiz para caminhões em protestos, isso ocorreu no evento em 15 de março de 2020 na Av. Paulista, que depois foi cancelado por conta da pandemia. Ou seja, a qualificação a mim designada na legenda está completamente errada. Sou o inverso disso. Quem me conhece sabe disso.” 

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