CartaCapital

O apagamento das mulheres na história e o direito à memória

Ao longo da história, mulheres foram apagadas como se o mundo fosse pensado e realizado apenas por homens. No Brasil não foi diferente

Apoie Siga-nos no

Por Daniela Valle R. Muller, para o blog Sororidade em Pauta.

Às vezes acontece bem na nossa frente, de supetão. A verdade é que passamos a enxergar o que já acontece faz tempo, afinal, o apagamento da mulher na história e/ou a diminuição do seu papel eram tidos como “naturais” e só e passaram a ser percebidos como problema há pouco tempo. Uma situação da qual nos damos conta aos poucos, percebendo que nos relatos oficiais nós, as mulheres, sumimos e, quando mencionadas, aparecemos apenas em papéis coadjuvantes – amantes, esposas, mães, enfim, como um
detalhe pitoresco e de menor relevância da narrativa.

Discutimos e pensamos nisso, normalmente, de forma abstrata, mas a vida não acontece apenas no plano das idéias, a realidade é caprichosa e um dia ela teima de acontecer assim, na nossa frente, e de um modo bem explícito para não deixar dúvida do que se passa. Mais do que entender, nesse momento sentimos o que é a memória negada e distorcida em relação às mulheres, em espacial quanto sua atuação na esfera pública.

Comigo esse flagrante aconteceu durante uma aula sobre Lênin e a Revolução Russa. O professor relatava detalhadamente os acontecimentos entre 1914 e 1920 e a certa altura mencionou uma importante reunião de governo, realizada pouco depois da vitória revolucionária.

Participação de mulheres na revolução bolchevique é historicamente apagada.

Nesse momento, uma aluna o interpelou sobre a participação de uma determinada mulher na referida reunião. O professor confirmou, mas disse que essa participação, essa mulher, o fato em si, nada daquilo era significativo e seguiu a aula sem dar detalhes sobre nossa revolucionária, que permaneceu nas sombras da história.

Nesse exato momento, aquela mulher foi simplesmente apagada da narrativa histórica e isso aconteceu através de um gesto singelo, cotidiano: a avaliação como irrelevante dessa presença feminina.

É um poder grande esse de selecionar o que é importante e o que não é digno de registro e nota, o que pode ser apagado, esquecido.

Até hoje não sei quem era a pioneira, seu nome não foi anotado no quadro, nem mesmo foi ditado claramente, apenas mencionado en passant pela colega de turma. E isso em relação a um movimento protagonizado por mulheres que em 23 de fevereiro de 1917 (dia 8 de março no nosso calendário) iniciaram um protesto e uma greve que foram o estopim da Revolução Russa de outubro de 1917. Mesmo assim, pouco ou nada sabemos acerca de revolucionárias como Inessa Armand, Natália Sedova, Rosalia Zemliatchka, Aleksandra Kollontai e Nadêjda Krúpskaia.

Esse é apenas um de infinitos casos. Mesmo em relação à Revolução Francesa, detalhada, descrita e narrada ad nauseam nos últimos duzentos anos, raramente se menciona a existência de Olympe de Gouges, que em 1791 escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, além de peças teatrais que explicavam os princípios da Revolução Francesa à enorme massa de analfabetos, nem Sophie de Condorcet e tantas outras que já questionavam a desigualdade opressora entre homens e mulheres.

A história do Brasil não é exceção. Aqui, tantas outras mulheres são igualmente esquecidas, classificadas como desimportantes.

Desse jeito ficamos sem acesso a uma parte importante da nossa memória, das origens que nos constituíram enquanto sociedade, porque pouco ou nada conhecemos sobre figuras como Dandara dos Palmares, Luísa Mahin, Mariana Crioula, Myrthes Campos, Alzira Soriano, Nísia da Silveira.

Luísa Mahin, uma das líderes da Revolta do Malês e mãe do abolicionista Luís Gama.

Ou então são desqualificadas como figuras tristes, loucas ou más. Essa desqualificação, aliás, é uma constante, basta lembrar da vereadora Marielle Franco, que poucas horas após seu brutal assassinato sofre uma nova tentativa de homicídio, dessa vez, simbólico, moral, para que o crime seja perfeito sua morte tem que ser completa, para impedir a continuidade da sua luta, das suas idéias, da sua representatividade, enfim, para que ela se tornasse uma pessoa que ninguém conhece e, portanto, sem importância, senha para desaparecer dos registros históricos oficiais.

E muito antes dela aprendemos tão-somente que D. Carlota Joaquina era louca, D. Leopoldina, melancólica e mal amada, Domitila de Castro, apenas uma mundana e por aí vai. Será mesmo? Mulheres que participaram tão ativamente de acontecimentos políticos tão relevantes na história do Brasil?

Um país que nasceu de um decreto assinado por uma mulher, onde a escravidão foi extinta por lei assinada também por uma mulher, a primeira escola pública gratuita foi instituída por uma mulher, a primeira greve geral foi iniciada por mulheres, operárias da indústria têxtil de São Paulo, não tem como contar sua história por inteiro excluindo as mulheres da narrativa e dos registros oficiais.

Conseqüência dessa falta de registro é a impressão, fortemente instalada no senso comum, de que a participação das mulheres na história, na sociedade e na política é nula ou bastante secundária e reforça a premissa patriarcal de que a mulher deve se restringir ao ambiente e às questões domésticas, civis, particulares.

Entretanto, a memória das conquistas, realizações e também das injustiças sofridas por nossas ancestrais que foram massacradas e/ou silenciadas, que não tiveram oportunidade de ter seu ponto de vista considerado, é a chave para interromper essa lógica, sendo um componente essencial para compreender o presente e confrontar uma visão de “natureza” quanto ao protagonismo dos homens na construção do processo histórico.

Tal quadro desafia a compreensão da realidade para além dos feitos narrados pelos vencedores, registrados nos livros e documentos oficiais, e recomenda uma aproximação do passado que fica oculto, de expedientes que a história oficial deu por arquivados, mas estão guardados em fragmentos como roupas, canções, corpos, depoimentos, ruínas, prédios.

Olhar com atenção esses fragmentos permite “escovar a história a contrapelo”, conhecer e cultivar a memória daquelas que lutaram e trazê-las a público para dar nova vida às mulheres que ficaram escondidas nas sombras da história.

Porque a memória é assim, um jogo de luz e sombras, seletiva, enquanto traz à luz alguns fatos e aspectos obscurece tantos outros, que se apagam, caem no esquecimento.

Resgatar a memória de luta das mulheres é uma necessidade para enfrentar, hoje, o retrocesso representado pela opressão machista e patriarcal, portanto, conhecer, registrar e divulgar os feitos das mulheres, suas lutas, suas idéias, suas estratégias de solidariedade e enfrentamento é dar nova vida a essas guerreiras, evitando que fiquem nos registros históricos como derrotadas e insignificantes.

Na foto: Myrthes Gomes de Campos, primeira mulher a exercer advocacia no Brasil

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.