CartaCapital
Notas tocadas com propósito
O Música em Família completa 23 anos com pouco alarde e grande repercussão no campo educacional


Certa vez, um crítico de música definiu o pianista Nelson Freire (1944-2021) como “o grande segredo da música erudita”. Ele referia-se ao fato de, mesmo sendo um dos maiores nomes do piano, Freire ter optado por uma carreira sem badalações. Pois o projeto Música em Família, guardadas as devidas proporções, é o segredo da arte como ferramenta pedagógica.
Paula Santisteban e Eduardo Bologna criaram o programa em 2003 e, a despeito do sucesso da empreitada, pouco aparecem na mídia e são também parcimoniosos na divulgação dos shows que fazem – o próximo está marcado para o dia 11 de novembro, no Teatro B32, em São Paulo.
Eles atendem, no entanto, 500 escolas no Brasil e em Portugal, nas quais distribuíram, ao longo da trajetória, cerca de 300 mil álbuns/livros e somam a marca de mil shows que, ao todo, reuniram 500 mil pessoas. E, ora vejam só, tocaram até no Big Brother Brasil.
Em 2018, as músicas Não Custa Nada e Sem Perceber tornaram-se tema do refugiado sírio Kaysar Dadour e levou a dupla para além dos muros da escola. Hoje, somam 4,5 milhões de visualizações no YouTube – sem contar os vídeos postados por terceiros – e 600 mil streams na plataforma Spotify. “O Música em Família não é uma banda musical, não é um produto do mercado. É um conceito”, resume Paula, em entrevista a CartaCapital, às vésperas do Dia das Crianças.
A gênese do projeto, quem diria, remonta à participação de Paula Santisteban num concurso do Domingão do Faustão para revelar novos talentos. Ela tornou-se uma das finalistas em meio a 30 mil candidatos. Mas a projeção nacional gerou nela uma crise. “Repensei muito como a música estava inserida em um mercado que acompanhava o sistema de consumo em que vivemos, e no quanto isso estava afastando as pessoas da música em sua essência”, diz.
Essa percepção se juntava a outra, que Paula tinha em seu trabalho como professora de música: “As crianças e suas famílias não tinham hábitos culturais, quase não frequentavam espaços de arte e não ouviam música além da recebida todos os dias por meio da tela da tevê e do rádio”.
“Pensamos em temas importantes a serem conversados na sala de casa”, diz a criadora do projeto
Foi assim dado o estalo para que ela se unisse ao então namorado – hoje marido – Eduardo Bologna para criar um projeto que compreendesse arte e educação. Nascia então o Música em Família.
Paula é descendente de comerciantes da região do Brás, em São Paulo. Portanto, não teve muitas dificuldades em “vender” seu sonho. “O difícil era pensar no projeto, compor as canções, conversar com os educadores, fazer os shows, gravar as músicas, idealizar o projeto gráfico e ainda fazer bolo no fim do dia”, brinca.
O bom resultado inicial gerou uma cobrança por um material autoral e temático, que produziu os discos Som da Vida e Somos Todos Iguais, ambos de 2007. Na década seguinte, eles firmaram uma parceria com o Instituto Alana, uma organização educacional que defende os direitos das crianças.
O encontro com Ana Lucia Villela, presidente do Alana, mostrou-se particularmente inspirador. Não Custa Nada, que fala de desapego material, nasceu a partir de uma das reuniões com o instituto e da exibição do documentário Criança, a Alma do Negócio (2011), de Estela Renner e Marcos Nisti, sobre consumo infantil.
“O mais engraçado é que, um dia, toca o telefone e era uma multinacional, dona de uma marca de refrigerantes, querendo comprar a música para uma propaganda. Nunca aceitamos ligar nossa arte com nada prejudicial à infância”, diz Paula.
As pautas que regem o Música em Família nunca são aleatórias. Elas nascem da observação de Paula e Eduardo sobre a filha, Estela, e da experiência de serem pais e verem outros pais em ação. São temas como consumo, diversidade e amizade, entre outros, que vão sendo aprimorados em conversas com educadores.
“A partir do momento que eles passam para nós a ideia de cada projeto, percorremos juntos nossas vivências relacionadas aos temas, compartilhamos saberes e fazemos projeções de como as crianças, as famílias e os educadores podem viver experiências significativas”, diz a educadora Andrea Chehade, que integra a parte pedagógica do projeto. “Compartilhamos tudo: canções, poemas, inspirações.”
A parte musical é igualmente diversificada. Do esquema voz e violão dos primeiros anos, Paula e Edu chegaram a gravar ao lado de uma orquestra de 50 músicos e fazer apresentações com cenário, projeções e balés. Os gêneros tocados vão de jazz a bossa nova, do rock e MPB tropicalistas a folk e world music.
O show de novembro, por exemplo, será baseado nos escritos do compositor erudito Edmundo Villani-Côrtes. Em boa parte das composições existe a preocupação com o dia a dia da criança. Em 2021, auge da pandemia, eles lançaram o projeto bilíngue O Que Nós Somos Juntos. Uma das canções, Eu Preciso Voltar a Te Ver, trata do isolamento social.
A receita de canções para crianças com conteúdo pedagógico pode remeter a outras experiências do gênero, como o Palavra Cantada e o Adriana Partimpim, de Adriana Calcanhotto. Embora semelhantes na essência, eles possuem objetivos diferentes.
“São artistas que fazem incrivelmente bem música com foco nas crianças, dentro do universo delas”, diz. “A gente não faz música com foco único na criança, e sim num lugar onde adultos e crianças se encontram, pensando na família, com foco na conexão dessas duas pontas. Pensamos em temas importantes a serem conversados na sala de casa.” •
Publicado na edição n° 1281 de CartaCapital, em 18 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Notas tocadas com propósito’
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