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Sem Marçal para embaralhar o jogo, Boulos agora enfrenta o candidato oficial de Bolsonaro e Tarcísio

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Para reconquistar o eleitorado de bairros periféricos, Marta Suplicy e Lula devem ter uma presença maior na etapa decisiva da campanha. Enquanto Bolsonaro observava os movimentos de cima do muro, o governador Tarcísio de Freitas trabalhou duro para levar o prefeito ao segundo turno – Imagem: Ricardo Stuckert/PR e Redes Sociais/Ricardo Nunes
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Guilherme Boulos escolheu a região do M’ Boi Mirim, na Zona Sul de São Paulo, para fazer o seu primeiro ato de campanha após conquistar uma vaga no segundo turno das eleições paulistanas. Não foi uma escolha aleatória. O bairro integra o distrito eleitoral de Piraporinha, área com o maior número de eleitores aptos a votar (245,6 mil) e onde o candidato do PSOL terminou em primeiro lugar, com quase 37% dos votos válidos. Também em Piraporinha Lula obteve o maior porcentual de votação na cidade nas últimas eleições presidenciais, 66,58%. Festejado por militantes do PSOL e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto durante a caminhada, o deputado fez acenos para atrair ao palanque a colega Tabata Amaral, do PSB, que terminou o primeiro turno em quarto lugar. “Não tivemos a oportunidade de conversar, mas pretendo falar com ela pessoalmente até para agradecer o apoio generoso que ela deu”, afirmou Boulos, ao anunciar a incorporação de três propostas da candidata – auxílio a mães de crianças com deficiência, oferta de crédito a empreendedores e a instalação de um parque tecnológico na Zona Leste da cidade.

São remotas as chances de Boulos repetir o feito de Lula em 2022, quando conseguiu atrair a adversária Simone Tebet, derrotada no primeiro turno, para a sua campanha. Antes mesmo de a Justiça Eleitoral concluir a apuração dos votos, Tabata declarou voto no candidato do PSOL, mas esclareceu que não pretende participar de atos públicos nem aceitaria assumir um cargo em um eventual governo do psolista. “Esse é um voto por convicção, não é um voto negociado. Não vou subir em nenhum palanque”, disse a deputada, esclarecendo que Boulos representa um projeto distinto do seu. O candidato do PSOL conta, porém, com os declarados apoios do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro Márcio França, ambos do PSB de Tabata. Os dois devem gravar vídeos e participar de eventos de campanha. Já o tucano José Luiz Datena, que reconheceu um desempenho eleitoral “horrível”, “abaixo da crítica”, adiantou que não vai apoiar mais ninguém. Espera apenas a eleição passar para retomar suas atividades como apresentador de tevê na Band.

Candidato à reeleição, Nunes conta com o peso das máquinas municipal e estadual

Ainda que seja capaz de atrair todos os eleitores de Tabata (9,91% dos votos válidos) e também aqueles de Datena (1,83%), Boulos alcançaria 41% dos votos, porcentual insuficiente para superar Ricardo Nunes, do MDB, que obteve apenas 25 mil votos a mais que o candidato do PSOL, mas é apontado como o herdeiro natural do eleitorado de Pablo Marçal, do PRTB. Isso significa que Boulos tem a difícil missão de virar votos confiados ao prefeito no primeiro turno e tentar conquistar frações dos eleitores do ex-coach, a maior parte deles de bolsonaristas que têm aversão à esquerda, mas não consideram Nunes um aliado confiável, a despeito do envergonhado apoio de Jair Bolsonaro, que passou a maior parte da campanha em cima do muro, à espera para ver se Marçal seria capaz de ultrapassar seu candidato. Não tivesse enfiado os pés pelas mãos com a divulgação de um laudo médico grosseiramente falsificado, que atribuía a Boulos uma intoxicação por cocaína, o ex-coach talvez estivesse realizando o seu sonho hoje, de fazer campanha na garupa de Bolsonaro.

“Teoricamente, o eleitor do prefeito, que se apresenta como um candidato de centro-direita, é mais próximo de Boulos do que o de Marçal, que se situa na extrema-direita do espectro ideológico. Em muitos pontos, o ex-coach é mais radical que o próprio Bolsonaro. Levando em conta isso, faria mais sentido o candidato do PSOL tentar virar o voto daquele eleitor de Nunes que não está totalmente convencido, mas é uma tarefa complexa”, observa o cientista político Antônio Lavareda. “É possível um segundo colocado virar o jogo e vencer as eleições? Sim, claro que é possível, mas em São Paulo isso ocorreu uma única vez, quando o petista Fernando Haddad superou o tucano José Serra em 2012. Provavelmente, Boulos tentará nacionalizar o máximo possível as eleições, para explorar a rejeição a Bolsonaro, derrotado por Lula na capital paulista. Mas é uma operação complicada, porque nas eleições municipais costumam prevalecer as questões locais. O eleitor não costuma ir para as urnas com a cartilha da ideologia debaixo do braço. Ele quer saber se o posto de saúde está funcionando, se a rua será asfaltada, se vai ter uma creche no bairro…”

“Que porcaria de líder é esse?”, indaga Malafaia, irritado com o “jogo duplo” de Bolsonaro – Imagem: Zack Stencil/Partido Liberal e Mauro Pimentel/AFP

Na segunda-feira 7, durante uma coletiva de imprensa, o candidato do PSOL evocou o exemplo da eleição de 2012 para mostrar que é possível, sim, virar o jogo. “Naquela época, Celso Russomano ficou em terceiro lugar. Todos os analistas diziam: ‘O Haddad está derrotado, o eleitor do Russomano é de direita, rejeita o PT e a esquerda’. O Haddad ganhou a eleição. A política não é matemática simples. Existe um segmento do voto dos outros candidatos que é ideológico, aí me rejeita por razões ideológicas, por eu ter lado. Mas uma parte importante do eleitorado, independentemente de em qual candidato votou, expressa um sentimento de mudança”, afirmou Boulos. “Ao comparar São Paulo com outras capitais onde prefeitos disputaram a reeleição, percebe-se que a ­maioria fez mais de 50%, elegeu-se no primeiro turno ou está bem colocada no segundo. Aqui, 70% dos eleitores votaram contra o prefeito”, acrescenta o ­deputado estadual Luiz Cláudio ­Marcolino, secretário-geral do PT de São Paulo.

Quando se comparam os mapas de votação na capital paulista, é possível observar que Marçal venceu nos distritos onde Bolsonaro teve os maiores porcentuais de voto em 2022, enquanto Boulos triunfou na região central e nos extremos das zonas Leste, Oeste e Norte, onde Lula também teve bom desempenho. Já o prefeito conseguiu vencer na maior parte da Zona Sul, conquistando eleitores tanto de Lula quanto de Bolsonaro. O candidato do PSOL tem, porém, alguns trunfos para tentar reverter esse cenário. O primeiro e mais óbvio é mobilizar ainda mais a sua vice. “Marta (Suplicy) será decisiva para fazer a virada em Parelheiros e no Grajaú, uma região onde ela tem muita força, onde ela fez o Hospital de Parelheiros, fez o corredor de ônibus até Santo Amaro, inaugurou vários CEUs”, diz Boulos. “Ela deve estar muito presente tanto lá quanto na Zona Leste, nos ajudando a ganhar os votos que a gente precisa para vencer a eleição.” Da mesma forma, o candidato espera contar com o apoio de vereadores que tiveram expressiva votação em bairros-chave, como Alessandro Guedes, recordista de votos em Itaquera. “Alfredinho, Enio Tatto e Nilto Tatto também prometeram uma virada no Grajaú, acabamos de acertar isso em reunião.”

Presidente nacional do MDB e coordenador da campanha de Nunes, o deputado Baleia Rossi acredita que os eleitores de Marçal vão naturalmente apoiar a reeleição do prefeito na etapa decisiva. “Não é necessário radicalizar o discurso, basta mostrar que o Ricardo (Nunes), pessoalmente, é um homem conservador, católico praticante. O primeiro turno também mostrou que é preciso apresentar propostas que promovam o empreendedorismo e os microempresários”, afirma o parlamentar, referindo-se a um tema onipresente nos discursos do ex-coach. Rossi refuta ainda a tese de que o eleitorado paulistano deseja mudança: “O prefeito tem uma avaliação majoritária entre boa/ótima e regular, com uma desaprovação menor que 30%, similar, por exemplo, à rejeição do governo federal”.

A equipe de Boulos não acredita, no entanto, que a transferência de votos de Marçal para Nunes se dará de forma tão automática como se supõe. O candidato do PRTB liberou os seus eleitores “para votarem de acordo com suas convicções”, sem disfarçar o ressentimento com Bolsonaro e com o governador paulista, Tarcísio de Freitas, que chegou a defender sua prisão após a divulgação do laudo falso contra Boulos. Nas redes sociais, muitos apoiadores de Marçal afirmam que pretendem anular o voto. “Não podemos subestimar que teve gente que votou por ­convicção e, agora, pode não ver nem no Nunes nem no Boulos uma alternativa”, pondera o ­deputado petista Rui Falcão, um dos ­coordenadores da campanha de Boulos. “Muitos jovens votaram no Marçal pelo estilo rebelde dele, para protestar, para ‘zoar’. Esse eleitor pode ser conquistado por propostas como o ‘CEU Profissões’, que é um caminho para o empreendedorismo, para esse pessoal que vê esse caminho como uma forma de mudar de vida.”

No horário eleitoral gratuito, Boulos pretende dar especial atenção aos trabalhadores precarizados da periferia, em particular os motoristas e entregadores de aplicativos. Muitos foram ­seduzidos pelo discurso de Marçal, fortemente inspirado na teologia da prosperidade das igrejas neopentecostais, e engrossaram as carreatas e motociatas do ­outsider. ­Entre as propostas do candidato do PSOL para essa parcela do eleitorado figuram a suspensão do rodízio de veículos para motoristas de aplicativo, a construção de centros de apoio aos entregadores e a criação de uma agência de crédito para financiar microempreendedores na capital paulista.

Nas redes sociais, apoiadores do ex-coach cogitam anular o voto no segundo turno – Imagem: Karina Iliescu/Folhapress

“A gente pretende disputar a parcela do eleitorado do Marçal mais jovem e da periferia, que está descontente com a gestão Nunes. Vamos nos apresentar como alternativa de mudança e falar sobre pautas que são importantes para eles”, comenta Josué Rocha, coordenador da campanha de Boulos pelo PSOL. “Vamos ter mais tempo na televisão para aprofundar a apresentação de propostas, como o Poupatempo da Saúde, e também de iniciativas que só falamos parcialmente no primeiro turno, a exemplo do Acredita Mulher, voltado para mulheres empreendedoras.”

O horário eleitoral terá outra dinâmica, enfatiza Falcão. “Tínhamos pouco mais de dois minutos contra seis do Nunes. Agora ambos teremos cinco, e temos uma presença maior nas redes sociais. O prefeito não ligou para isso, não se preocupou em aumentar o engajamento, por entender que a televisão seria suficiente para levá-lo para o segundo turno”, observa. Já o vereador eleito Nabil Bonduki vislumbra, na saída de Marçal, uma oportunidade de ampliar o diálogo com a juventude pelas plataformas digitais. “O eleitorado da periferia também pode ser alcançado pelas redes sociais, basta furar a bolha. É preciso emitir uma mensagem que chegue até essas pessoas”, comenta o petista. “No primeiro turno, Boulos alcançou os tradicionais 30%, aquela fatia do eleitorado de esquerda em São Paulo. Com um bom trabalho de Marta, é possível atrair os 20% que faltam.”

Outro elemento visto como estratégico são os debates. “Estamos dispostos a ir a todos”, afirma Falcão. Dos 12 encontros previstos, Nunes se dispôs a participar de apenas três. Boulos disse concordar em reduzir o número, mas não abre mão de ao menos sete. “Reduzir para três é coisa de quem está com medo”, provoca o candidato do PSOL. Resta saber se a população não está saturada desses eventos. No primeiro turno, foram realizados 11 debates, e eles pouco contribuíram para esclarecer os eleitores. O que prevaleceu foi o festival de baixarias encenado por Marçal.

Na televisão, o candidato do PSOL pretende dar especial atenção aos trabalhadores precarizados

Se Boulos tem interesse de nacionalizar o debate, apontando para o risco de entregar a cidade mais rica e populosa do País aos aliados do clã Bolsonaro, o prefeito faz de tudo para manter o debate centrado nas questões locais e insiste em apresentar seu adversário como “radical”, representante da “extrema-esquerda”. Ao longo de todo o primeiro turno, Nunes sofreu com a postura vacilante do ex-presidente, que chegou a indicar seu vice, o coronel Mello Araújo, ex-comandante da Rota, mas depois reconheceu que o prefeito não era o seu “candidato dos sonhos” e vez por outra deixava escapar um elogio a Marçal. O capitão “jogou para os dois lados”, critica o pastor Silas Malafaia, que assumiu o ônus de combater o ex-coach no quintal bolsonarista, atraindo a fúria de sua milícia digital. “Entra nas redes de Bolsonaro e dos filhos dele. Não tem uma palavra sobre a eleição de São Paulo. É como se ela não existisse”, queixou-se à Folha de S.Paulo. “Que porcaria de líder é esse?”

A equipe de Boulos também aposta em maior presença de Lula no segundo turno, mas a estratégia pode ter efeito limitado, pondera Lavareda. “Naturalmente, o presidente vai engajar-se mais em todas as praças onde haverá segundo turno, como São Paulo, Fortaleza e Porto Alegre, mas as pesquisas indicam que entre 75% e 80% do eleitorado paulistano sabe que ele é o candidato de Lula. Se você reparar, os 29% de votos que Boulos obteve no último domingo correspondem à soma dos porcentuais que ele e o petista Jilmar Tatto tiveram no primeiro turno das eleições de 2020. Sem o PT e o apoio de Lula, Boulos não teria chegado ao segundo turno”, observa o cientista político. “O que o presidente poderia ter feito, e não fez, foi confiar a Boulos um cargo administrativo, porque, neste caso, ele poderia ter provado que teve um comportamento moderado no governo, neutralizando a pecha de radical que os adversários lhe colocaram.”

Boulos tem pouco mais de duas semanas para tentar reverter uma grande desvantagem. Na quarta-feira 9, a Fundação Escola de Sociologia e Política (FESPSP) divulgou a primeira pesquisa eleitoral do segundo turno. Na sondagem, 46,9% dos entrevistados declararam voto em Ricardo Nunes, enquanto 33,6% mencionaram o nome de Guilherme Boulos. Outros 7,4% afirmaram que pretendem anular o voto ou apertar a tecla branca. Na pesquisa estimulada, quando são apresentados os nomes dos candidatos, o atual prefeito chega a 51,5% e o candidato do PSOL registra 35,9%, com 8% de votos brancos ou nulos. Ao serem relacionados aos seus padrinhos políticos, Nunes perde dois pontos percentuais quando associado a Bolsonaro e Boulos cresce três pontos com o apoio de Lula. Foram consultados 1,5 mil eleitores entre os dias 7 e 9 de outubro. A margem de erro é de 2,5%. O Datafolha deve divulgar sua primeira pesquisa do segundo turno na tarde da quinta-feira 10, após o fechamento desta edição de CartaCapital.

Tábata declarou voto em Boulos, mas não está disposta a subir no palanque. Falcão acredita ser possível disputar parte do eleitorado de Marçal – Imagem: Redes sociais/Tabata Amaral e Lula Marques/Agência PT

Ciente do gigantesco desafio de derrotar o bolsonarismo na capital, a cúpula do PT decidiu colocar a mão no bolso. Na quarta 9, anunciou a transferência de 15 milhões de ­reais para a campanha de Boulos e Marta. Não há como negar o notável esforço da legenda para apoiar a candidatura: para outros 13 candidatos do PT que disputam o segundo turno, entre eles Evandro Leitão em Fortaleza e Maria do Rosário em Porto Alegre, o partido repassará, ao todo, 27,6 milhões de reais.

Mesmo se Boulos perder, mas se aproximar do resultado obtido em 2020, ele se mantém como símbolo da renovação à esquerda e uma importante liderança progressista, avalia Lavareda. “Naquela eleição, ele conseguiu 40,62% dos votos válidos. Somente se tiver um desempenho inferior, eu diria que ele sairá derrotado, até porque as eleições municipais têm uma dinâmica própria. Boulos enfrenta um candidato à reeleição, com todo o peso da máquina pública”, observa o cientista político. “Além disso, convém lembrar o efeito cumulativo. Lula disputou quatro eleições até ser eleito presidente.” E o tucano José Serra, podemos acrescentar, perdeu duas vezes antes de vencer em São Paulo. •

Publicado na edição n° 1332 de CartaCapital, em 16 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘No alvo original’

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