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Naufragados no descaso

O drama das famílias em Porto Alegre é agravado pela agenda privatista de Sebastião Melo e Eduardo Leite

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Naufragados no descaso
Mesmo com 428 milhões de reais em caixa, o Dmae não investiu na manutenção adequada da rede de comportas e das casas de bombas – Imagem: Ricardo Stuckert/PR
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A capital gaúcha não teve trégua. Com a persistência das chuvas no fim de semana anterior, o nível do Lago Guaí­ba, que banha a Região Metropolitana de Porto Alegre, voltou a subir, mantendo-se acima dos 5 metros no cais do porto até a noite da terça-feira 14. A nova cheia, enquanto a inundação anterior persistia em vários pontos da cidade, levou à evacuação de mais um bairro pela Defesa Civil. De madrugada, cerca de 300 famílias do Lami, no extremo sul da cidade, tiveram de deixar tudo para trás e buscar refúgio na casa de parentes ou em abrigos municipais.

A Agência Nacional de Aviação Civil emitiu um alerta às companhias aéreas para suspender a venda de passagens com destino ao Aeroporto Internacional Salgado Filho, que permanecia com a pista submersa. O fornecimento de água e energia elétrica ainda não havia sido normalizado. Até mesmo bairros de classe média, como Cidade Baixa e Menino Deus, prosseguiam com pontos de alagamento até a terça-feira 14, contrariando a tese do prefeito Sebastião Melo, do MDB, de que os atingidos eram, de certa forma, responsáveis pela tragédia, por habitar locais inadequados.

“Essas pessoas que foram acolhidas e tantas outras que não estão nesses abrigos, que permanecem na casa dos amigos, nunca deveriam morar onde moram”, afirmou Melo, em espantosa entrevista ao Jornal Nacional, da Rede Globo. Ao menos o prefeito não tentou transferir a responsabilidade para São Pedro, sempre acusado de pesar a mão nas chuvas. A culpa, se existe, é de quem está no lugar errado.

Esse tortuoso raciocínio talvez explique a indignação do alcaide ao tomar conhecimento de que o Ministério Público gaúcho decidiu instaurar um inquérito para apurar as causas da enchente histórica na capital, incluindo o motivo pelo qual o sistema de contenção das cheias do Guaíba entrou em colapso. Candidato à reeleição, Melo questionou se a investigação será feita em todos os municípios atingidos pelas inundações e arrematou: “Eu vou responder, mas buscar culpados e achar que é desse jeito que vai acontecer, politizando o debate, eu não vou fazer”.

O emedebista tem motivos para fugir da espinhosa discussão. Reformado em 2012, o sistema de comportas ganhou equipamentos que permitiam a abertura e fechamento de forma mecanizada, mas boa parte dos motores foi roubada e os demais que sobraram não tiveram manutenção adequada. Agora é preciso mobilizar retroescavadeiras ou trabalhadores com cordas para içar as estruturas. Além disso, as comportas não são 100% vedadas, há brechas que precisam ser preenchidas com sacos de areia.

Não é tudo. No início da cheia, apenas quatro das 23 casas de bombas de Porto Alegre estavam funcionando adequadamente, segundo informações do próprio Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae), responsável pelo sistema. Também neste caso, o sucateamento dos equipamentos favoreceu o retorno da água para as áreas que deveriam ser protegidas. “Com manutenção adequada, a história poderia ser diferente. O sistema só falhou por falta de incremento, por não ter bombas mais potentes e pela falta de conservação das já existentes”, diz o engenheiro Décio Botta, que no fim dos anos 1960 trabalhou no Departamento Nacional de Obras de Saneamento e participou da construção da rede de bombeamento.

O prefeito tampouco deu uma resposta satisfatória para a escassez de investimentos na prevenção de enchentes na capital gaúcha. O UOL revelou que o gasto com “melhorias no sistema contra cheias” despencou de 1,7 milhão de reais, em 2021, para zero no ano passado. Após a veiculação da matéria, o secretário de Comunicação de Porto Alegre, Luiz Otávio Prates, apressou-se a desmentir a informação. Segundo ele, a prefeitura investiu 89 mil ­reais nessa rubrica específica, ainda que o valor não tenha sido registrado no Portal da Transparência, fonte consultada pela reportagem. Prates acrescentou que a proteção às enchentes é uma ação transversal do governo, a englobar investimentos em várias secretarias, que totalizaram 108,8 milhões, informou ao jornal digital GZH.

Sindicalistas acusam a prefeitura de sucatear a autarquia responsável pelo sistema antienchentes para justificar venda futura

Ainda assim, o valor corresponde a apenas um quarto dos 428,9 milhões de reais que o Departamento Municipal de Água e Esgoto possui em caixa, após amealhar um superávit de 31,1 milhões em 2023. Há pelo menos três anos Melo defende repassar à iniciativa privada boa parte dos serviços prestados pelo Dmae. Mais recentemente, criou até um neologismo para definir seu projeto. “Não vou vender o Dmae, nem demitir os funcionários. Estamos ‘parceirizando’ o esgoto, a extensão de rede e a comercialização”, disse à Rádio Guaíba, em maio do ano passado.

Na avaliação da engenheira Sandra ­Darui, coordenadora do Conselho de Representantes Sindicais do Dmae, o prefeito sucateia a estrutura da autarquia para privatizá-la no futuro. O processo é evidente não apenas pela deliberada escassez de investimentos, mas também pela falta de reposição de pessoal. Em 2007, o Dmae tinha 2.493 servidores. Agora, esse número gira em torno de 1.050. “Assim é impossível dar conta da demanda”. A Prefeitura não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem de CartaCapital.

A precarização dos serviços públicos é tática manjada na agenda privatista. Com a população insatisfeita, é mais fácil vender a ideia de que a iniciativa privada é capaz de oferecer melhor atendimento, embora as experiências das privatizações quase sempre apontem na direção contrária. Em janeiro, vereadores de Porto Alegre e deputados gaúchos chegaram a propor CPIs para investigar a atuação da privatizada CEEE, que deixou centenas de milhares de consumidores sem luz por mais de 48 horas após uma corriqueira tempestade de verão. O braço de distribuição da companhia foi privatizado em 2021 e arrematado pelo Grupo Equatorial, que pagou módicos 100 mil reais e assumiu um passivo de 7 bilhões.

Quando o governador Eduardo Leite, do PSDB, concluiu a venda da companhia, Melo guardou obsequioso silêncio. Não queria desagradar ao aliado de todas as horas. Agora, se vê obrigado a implorar para a empresa ter agilidade no restabelecimento de energia a cada novo apagão. Na atual conjuntura, com bairros inteiros da capital gaúcha debaixo d’água, é até difícil saber quem tem razão no jogo de empurra entre a privatizada CEEE, a alegar riscos de descargas elétricas em locais inundados, e o sucateado Dmae, que depende da energia para operar suas bombas.

Sem perspectiva de solução para o impasse, moradores do bairro Cidade Baixa perderam a paciência e queimaram móveis durante um protesto na Rua José do Patrocínio, na noite da segunda-feira 13. “São sete dias sem luz e sem água”, lamentou Cláudia Amodeo, síndica de um edifício às escuras, ao GZH. “Aqui, tem idosos e crianças doentes, em depressão. Estamos esgotados e, na parte da noite, ainda somos vítimas de assaltos.” •

Publicado na edição n° 1311 de CartaCapital, em 22 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Naufragados no descaso’

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