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Não basta pedir desculpas: deve-se desarmar o cristianismo por dentro

Diante da violação horripilante que foi a destruição do terreiro de candomblé no Rio, a proposta é ‘operar’ a retirada do pavio da dinamite

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É com grande tristeza que se recebe outra notícia sobre mais um templo de candomblé destruído. Foi na segunda-feira, 25 de março, na região de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Segundo os religiosos do próprio terreiro, eles foram expulsos pelos traficantes, que queriam transformar o centro em uma base para comércio de drogas.

A violência foi completa, com a destruição de vasos, de utensílios, de altares. Dois detalhes dessa violência merecem ser (ainda) mais destacados. Primeiro: no muro de fora do terreiro foi escrito: “Jesus é o dono do lugar”. Segundo: no ano passado o mesmo terreiro foi invadido e impedido, por um tempo, de realizar suas celebrações religiosas. Esses dados são importantes porque indicam uma violência contínua nas favelas contra os terreiros, e que, de alguma forma, os violentadores se relacionam com o protestantismo-evangélico, embebido com o fundamentalismo. Em um exercício teológico, porém, observa-se que tal fundamentalismo violador não se sustenta no que é lhe é mais elementar: a leitura bíblica a partir ‘dos originais’.

A territorialidade evangélica e seu vínculo com o fundamentalismo

Sobre tal violência, gostaria de destacar pontualmente as inscrições no muro do terreiro com a citação em alusão a Jesus, indicando uma territorização cristã do local. Quero deixar claro que não gostaria de discutir se os traficantes são ou não cristãos, evangélicos. Minha preocupação é, antes, perguntar que cristianismo é esse recebido por eles, que leva adeptos ou simpatizantes a praticarem tamanha brutalidade ao expulsarem e destruírem os templos de pessoas que professam outra religião.

É possível argumentar que especificidade da violência cristã nas favelas fluminenses tem sua origem no início do século XX, quando grupo de batistas e presbiterianos americanos escreveram um conjunto de panfletos e livros chamados “Os fundamentais” da fé cristã. Em tais documentos buscavam promulgar os pontos básicos do cristianismo, isto é, seus fundamentos. Aqueles que seguiam os pontos dos panfletos passaram, a partir de 1920, a se autodesignar fundamentalistas, preocupados em desenvolver uma revisão simplificadora do cristianismo. Em suma, os fundamentalistas defendiam que a Bíblia seria um livro “inerrante” (sem erros). Acrescente um importante detalhe: os arautos dos fundamentos bíblicos eram patrocinados, em grande parte, pelo dinheiro do petróleo e da indústria do ferro americanas.

O Brasil recebeu uma leva desses fundamentalistas protestantes no fim da década de 1920. Com ímpeto missionário renovado, apresentam novo vocabulário de desprezo às práticas religiosas do país. Embora a primeira leva de missionários fundamentalistas tenha chegado ao Brasil nas primeiras décadas do século XX, o movimento tomou novo fôlego durante a ditadura. No período, o fundamentalismo missionário se renovou, passando a indicar que o cristão, diferente de Jesus Cristo – que era pobre e galileu-, também tinha direito a ter prosperidade na terra, a benção. Esse novo movimento assumia uma forma de pentecostalismo com novas roupagens, unindo cristianismo e a lógica do mercado neoliberal numa vertente amplamente conhecida como a “teologia da prosperidade”.

É dessa teologia que vem a ideia da territorização cristã, tragicamente exemplificada com a inscrição do nome de Jesus no terreiro de candomblé destruído. Um símbolo da tomada de posse de um espaço sagrado. Essa violência é mais uma luta por higienização via discurso religioso operado nas áreas das favelas. Também é o reflexo de circuitos de missionários americanos que reatualizam o imperialismo via apologética cristã.

Não estou afirmando que no Brasil não se produziu uma forma autônoma e independente de cristianismo. Contudo, digo que elas foram impulsionadas pelo ímpeto americano de evangelizar o mundo. Como cristão e teólogo, ao perceber o quão longe pode chegar a violência religiosa praticada por meus pares, não acho que basta pedir desculpas por mais um templo de candomblé destruído. Não acho que baste. Diante de uma violação tão horripilante, a proposta é ‘operar’ a retirada do pavio da dinamite, tal como indica Walter Benjamin: “antes que a centelha chegue à dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado” (Walter Benjamin, Rua de mão única, 1995, p.46).

Exercício para cortar a centelha da pólvora: os ‘inícios’ da Bíblia hebraica

No esforço de tentar cortar a centelha da dinamite, é preciso reconhecer que as numerosas modalidades de movimentos fundamentalistas nas diferentes épocas dificultam a possibilidade de um o protestantismo-evangélico menos belicoso. O que é muito sério, pois os evangélicos têm por fundamento teológico, os relatos da Bíblia. Então, minha proposta de exercício aqui é analisar um dos textos bíblicos mais importantes na tradição judaico-cristã, o famoso texto de Gênesis 1,1, que abre a Bíblia. No texto, a maioria das versões das Bíblias protestantes traduzem os primeiros versos como “No princípio Deus criou o céu e a terra” (Almeida Corrigida e Fiel). Recentemente, a Nova Versão Internacional (NVI) optou por um caminho próximo: “No princípio Deus criou os céus e a terra”. Ambas as traduções foram produzidas sob incentivo das casas religiosas e missionárias evangélicas ligadas a alguma expressão do fundamentalismo. Assim, elas operam a tradução do termo “bereshit” por: “no princípio”.

É interessante, porque, se olharmos pelo menos uma tradução (mais) técnica católica (não ligada ao fundamentalismo protestante-evangélico) como a Tradução Ecumênica da Bíblia (a TEB), ela nos apresenta a seguinte tradução: “Quando Deus criou o céu e a terra”, percebe-se que a sentença da TEB modifica completamente a frase. De “No princípio Deus criou” para uma indeterminação como “Quando Deus criou o céu e a terra”. Na explicação dos editores da TEB, no rodapé, afirmam ser essa opção mais fidedigna à fórmula “Em um princípio Deus criou o céu e a terra”. Ou seja, considerando que os textos de Gênesis são os mesmo entre evangélicos e católicos, a fórmula “em um princípio” é a que mais se aproxima do original.

Continuando o exercício e, portanto, fazendo uso das ideias da Reforma Protestante de acesso aos originais e a suas traduções, se percebe que nas primeiras palavras da Bíblia não se expressa nenhuma univocidade como as traduções financiadas pelo fundamentalismo protestante-evangélico preferem afirmar. Ao contrário, utilizando a tradução mais próxima do original (“Em um princípio”) nota-se se que a criação judaico-cristã é apenas uma diante das demais criações do mundo relatadas nos diferentes credos e povos. Tal tradução relativiza a criação da Bíblia hebraica. Portanto, como teólogo protestante-evangélico, o simples dado de rediscutir os “originais” (jargão tão caro à Reforma Protestante) pode ajudar a diluir as ideais do imperialismo disfarçadas nas casas missionárias. Auxiliando, quem sabe, a desarmar a centelha que cisma em correr e estourar diariamente a dinamite do racismo e da intolerância religiosa.

Finalmente…

É importante afirmar que tal exercício (e outros mais) podem ajudar na construção de uma agenda de diálogo entre as religiões, na luta por desarmar o cristianismo brasileiro, cada dia mais bélico, mais racista com as tradições religiosas vindas da África. Digo isso, enquanto teólogo porque acho muito pouco pedir desculpas aos povos de terreiro pelos ataques feitos em nome de Jesus. Antes, nós cristãos devemos construir uma agenda de revisão dos priorados para, aos poucos, desarmar nosso cristianismo belicoso por dentro, diluindo suas bases duras, apologéticas, cercadas, imperialistas. Por isso reafirmo: não basta pedir desculpas. Deve-se construir uma série de exercícios teológicos com traduções e as tradições da história da igreja, que poderiam ajudar no desarme do cristianismo brasileiro tão acostumado à depredação dos demais. Assim, por conta da nova destruição do templo de Candomblé feita sobre o nome de Jesus, assumo que o protestantismo-evangélico brasileiro merece ser revisto não só ‘por fora’, mas, principalmente, ‘por dentro’ mediante uma severa revisão de desarme de suas lideranças e das doses imperialistas que impregnam ativamente seus templos.

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