Memória

cadastre-se e leia

Terno azul-marinho

Ou as confissões de um jornalista

Terno azul-marinho
Terno azul-marinho
Imagem: Roberto Stuckert Filho/PR
Apoie Siga-nos no

Virei jornalista por causa de um terno azul-marinho sob medida. Queria muito. Sou de um tempo em que depois dos quinze anos ia-se aos bailes do sábado de terno, gravata e sapatos luzidios, para refletirem a lua e as estrelas. Os bailes aconteciam no salão de festas do colégio, ou na casa das meninas, ou em clubes e clubinhos. Terno azul-marinho era o chique na sua expressão mais retumbante, mesmo no caso de você usar meia branca. Consta que o duque de Windsor jamais usou meia branca, mas em São Paulo, naqueles meus anos verdolengos, todo mundo usava, com raríssimas exceções, entre as quais me incluo, modestamente. E inutilmente: ninguém captava o requinte.

Quando o meu avô morreu, herdei-lhe os ternos. Vieram da Itália num baú, acompanhado pela viúva, com sua pele de pêssego aos setenta. Minha mãe, a quem atribuíam competência na tesoura, na agulha e na máquina de costura, pretendeu conformar os ternos à minha pessoa. Ao cabo, decretou: “Maravilha, um alfaiate não faria melhor”. Percebi a sombra de perplexidade no rosto do meu pai. De todo modo, o espelho me disse que mamãe era muito tolerante consigo mesma. Ela era determinada. Certa vez, remeteu-me para uma festa à fantasia em trajes de marajá confeccionados com velhas cortinas adamascadas e uma toalha de mesa. Felizmente, a caminho do baile desabou um temporal de verão e levou aquelas roupas hindus, com exceção das calças brancas, envergadas meses antes no desfile do dia 7 de Setembro.

Suponho ter conseguido explicar por que queria ardentemente o terno azul-marinho feito pelas mãos de um autêntico mestre em corte e costura. Enxergava-o como a salvação e a grande oportunidade surgiu com a Copa do Mundo de 1950. Colegas de um jornal de Roma escreveram para meu pai, pedindo artigos sobre a preparação do campeonato que se daria no Brasil dentro de alguns meses. Meu pai entendia de futebol como eu de ornitologia e então agarrei a chance pelos cabelos. Propus: “Que tal deixar para mim?” Ele topou sem hesitações – ou melhor com alívio. Ganhei um dinheirinho, o bastante para voar até a Rua Marconi, alcançar um sétimo andar e encomendar ao renomado alfaiate Nicola Canonico meu primeiro terno azul-marinho sob medida.

Sobre o terno azul-marinho poderia discorrer horas. Ainda é e sempre será o máximo, magnífico na suntuosidade da cor noturna do mar das aventuras de Ulysses, o Odisseu. O Corcunda de Notre-Dame, metido num terno azul-marinho, dança com a Cinderela. Mas este não é o momento. O assunto, certamente notaram, é jornalismo, que faz parte da minha vida desde que me dei conta dela. O pai da minha mãe era jornalista, bem como meu próprio pai. Deve ser por causa disso que, na infância e na adolescência, o meu propósito era tomar outro rumo. Quando me perguntavam o que queria ser quando crescesse, dizia cirurgião, advogado, comandante de submarino, santo. Dependia do dia e da cara do perguntador – tudo, menos jornalista. Ao meu coração soletrava a vontade de ser pintor, mas aos dezesseis, de repente, descobri que bastava escrever quatro artiguinhos para realizar um sonho. Disse: é comigo.

Moveu-me, como se percebe, o reles interesse insuflado pela vaidade. E vida adentro fui escrevendo artiguinhos e encomendando periodicamente ternos azul-marinho. Ainda assim, a vida e a profissão me reservariam novas descobertas. Primeira entre elas, a das assoberbantes responsabilidades da tarefa jornalística. Não esperem, está claro, por uma peça retórica sobre os compromissos de quantos militam no quarto poder. Aos olhos do mundo, funciona mais o terno azul-marinho do que as qualidades do caráter e do intelecto. Hoje em dia, aliás, se o terno for extraordinariamente desestruturado a ponto de engolir o seu usuário, melhor ainda. Deu para entender? Jamais deixaria de recomendar doses maciças de ceticismo para controlar qualquer arroubo romântico a respeito da importância da profissão. Há um problema, contudo. Está na discrepância entre a retórica e a prática do dia a dia.

Ainda é e sempre será o máximo, magnífico na suntuosidade da cor noturna do mar das aventuras de Ulysses

Os jornalistas se levam muito a sério, cada vez mais a sério. E são levados a sério, conforme demonstram as pesquisas. São eles os primeiros no índice de credibilidade no mesmo instante em que as tiragens de jornais e revistas atingem os níveis historicamente mais altos. É estranho, no entanto: nunca o jornalismo brasileiro foi tão pobre de ideias, tão primário na letra, tão incompleto e inconsequente na informação. Tão banal. Tão provinciano. Tão patético, na tola pretensão da cor total – algo que não aparece entre as prioridades dos grandes órgãos de imprensa do mundo contemporâneo. Décadas atrás, os jornais brasileiros não desfiguravam no confronto internacional. Hoje são clamorosamente terceiro-mundistas. E se duvidam, apanhem um bom jornal da Europa, ou dos Estados Unidos, e façam a comparação.

Me pergunto se isso tudo, isso inclusive, não faz parte do estágio de uma sociedade que não cumpriu o que prometeu. Às vezes, a gente se ilude, porque existem os computadores, a informação globalizada, a ­internet e outros bichos. Resta ver, porém, até onde vai a nossa competência em empregar inteligentemente os novos recursos. Estes são muito mais sutis, atilados, ricos – é isso, ricos, de todos os pontos de vista – do que qualquer arquivo do passado, de qualquer máquina elétrica. Nem falo da minha pré-histórica Olympia. Falo de uma Idade Contemporânea que aflorou num piscar de olhos. No entanto, a convivência dessa era de incrível progresso com a Idade Média do pensamento e do comportamento serve apenas para comprovar a nossa inadequação. Temos a oportunidade de ser contemporâneos e permanecemos arcaicos. Indo para a frente, vamos para trás.

Há algo pior – e aqui a questão é moral. Eu sei, eu sei que não reúno as melhores condições para atirar a primeira pedra. De fato, está longe de ser edificante a história de alguém que virou jornalista porque queria um terno azul-marinho sob medida. Acabei, porém, por aprender algumas coisas mais ou menos sem querer. Três basicamente, para ser exato. Primeira: jamais queira ser objetivo. Limite-se a ser honesto. Ou por outra: conte os fatos como você os viu, esclarecendo em que circunstância você os viu. Nada mais lhe cabe, só isso. É simples: não minta, não omita. Conte honestamente, como se estivesse escrevendo uma carta para a sua namorada. Se preferir, para a sua mãe. Segunda: jornalista não tem razão de ser sem espírito crítico, exercido, antes de mais nada, em relação ao poder. A fiscalização do poder é atribuição fundamental do jornalismo. Terceira (muito importante): a dinâmica da profissão mantém você jovem. Você pode estar por dentro de tudo e, se erra, no ralo espaço de 24 horas ganha a ocasião de se redimir.

Me dizem que para muitos o jornalismo virou o trampolim de outras carreiras. Uma passagem a caminho da melhor oportunidade. Eis aí desnudados os males de uma sociedade escassamente preocupada com o espírito. Soltei uma frase digna de um pregador do Apocalipse? Me perdoem. Em todo caso, aviso quem chegou até aqui: estou precisando de um novo terno azul-marinho. •

Publicado na edição n° 1378 de CartaCapital, em 10 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Terno azul-marinho’

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo