Memória
O editorial que Mino Carta não escreveu
Saber que o ex-presidente Bolsonaro passa em revista para a tropa que, hoje, lhe dá as costas, pode ter sido um último suspiro de vingança
Há um momento em que nos tornamos legado. E nesse fiapo de tempo, quando a inconsciência domina, resta ainda a esperança de um lapso de realidade, um pequeno momento em que seja possível reafirmar que a vida vale. Não a pena, não os percalços, mas a ousadia de viver. E olhar para os acontecimentos com certo orgulho.
A confluência dos acontecimentos é tema para os sociólogos. Para nós, jornalistas, os acontecimentos são matéria-prima e, não podemos negar, uma busca constante para montar o quebra cabeça da realidade. Poucas vezes tais peças se encaixam, abrindo espaço para o poder das palavras. Quis o tempo que isso acontecesse hoje.
Mino Carta morre no mesmo dia em que Jair Bolsonaro e sua tropa marcham para o banco dos réus. Mas não resta dúvida de que, se os acontecimentos possuem um momento em que se resvalam, no fiapo de consciência que se manteve nos últimos tempos, sabia que ainda havia vivido para ver esse acontecimento. O adeus de Mino coincide com a certeza de que a luta pela verdade factual e pela democracia se mantém inabalável.
Ao fundar a CartaCapital há 31 anos, Mino Carta deixou claro que a isenção jornalística não podia deixar espaço para as mazelas de quem trai os princípios democráticos, destrói a liberdade, ataca os vulneráveis e visa o lucro contra a vida. CartaCapital tem seu o espírito. Ao mesmo tempo em que noticiou sua morte, cobre com rigor e atenção o julgamento de Bolsonaro.
Vale para Mino Carta o trecho de Nelson Rodrigues quando diz “não há inimigo insignificante. Todo inimigo é uma potência. O amigo trai na primeira esquina. Ao passo que o inimigo não trai nunca. O inimigo é fiel. O inimigo é o que vai cuspir na cova da gente. Não há admiração mais deliciosa do que a do inimigo.”
Mino foi amado e odiado. Amou com intensidade e odiou com todas as vísceras. Sem nunca desprezar os inimigos da democracia. Para estes, sempre dedicou um espaço importante: o da memória e das palavras. Saber que o ex-presidente Bolsonaro passa em revista para a tropa que, hoje, lhe dá as costas, pode ter sido um último suspiro de vingança. Em um editorial que, infelizmente, ele não escreverá.
CartaCapital segue em frente sob a direção de Manuela Carta, que nos últimos anos assumiu a direção das plataformas sob o título. Segue mantendo o rigor e informando que as palavras não morrem. Os inimigos da verdade e da liberdade não dormirão tranquilos.
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