CartaCapital
Memória da resistência
Da passeata dos 100 mil à militância em uma organização de combate à ditadura


Todos temos uma história, não mais que uma, uma história coletiva que se confunde com a história de tantos outros combatentes da ditadura.
Em 1965, meu pai, Ted Teitelroit, de família judia, foi escolhido por William Tate, chefe do serviço para a América Latina da BBC, o primeiro representante da emissora no Brasil. Durante um ano trabalhou incessantemente para as notícias internacionais serem transmitidas pela rede de rádios e tevês brasileiras. O Estado, então sob censura, em período posterior à deposição de João Goulart, interferiu diretamente na transmissão e difusão de informações e notícias, iniciando um processo que levou ao fechamento do escritório da BBC.
Cabe uma digressão histórica sobre o golpe de 1964. Mino Carta lembra que viu a marcha passar, literalmente, ao assistir as tropas avançando pelo Centro de São Paulo. “No poder”, para Mino, “Jango tornou-se um estadista porque trabalhou pelo Brasil sonhado por Getúlio Vargas.” As reformas estruturais constantes do plano de governo eram a agrária, a administrativa, a constitucional, a eleitoral, a bancária, a tributária e a educacional. Sua principal base eram os sindicalistas, a esquerda organizada e os democratas progressistas. Por essa aliança, o governo de Goulart foi atingido por uma campanha que envolveu os órgãos de imprensa. “República de Sindicalistas” e “República Comunista” eram as manchetes dos jornais. O plano econômico de Celso Furtado pouco se distinguia daquele adotado pelos governos militares que depuseram Goulart. Já a perspectiva de reformas estruturais foi fortemente abalada e seus defensores afastados e cassados.
Ivanisa com Franklin Martins e os sogros – Imagem: Acervo pessoal
No segundo período, de 1969 a 1976, houve o recrudescimento da ditadura, materializado pelas invectivas violentas do Estado militar ao promover impiedosamente a coação, a repressão, a tortura sistemática e o assassinato de lideranças estudantis e sindicais que convocavam e organizavam manifestações numerosas em defesa da democracia e das reformas estruturais, e de jornalistas e políticos que as reverberavam.
A juventude foi um fator imprescindível na luta contra a ditadura, mobilizou-se nacionalmente em 1968. Participei da passeata dos 100 mil na Cinelândia. Como estudante de Psicologia na PUC do Rio de Janeiro, passei a participar ativamente do movimento estudantil. Debatia com psicanalistas de esquerda a prática da psicanálise e a participação de psicanalistas na luta em defesa da restauração da democracia, contribuíamos com textos publicados nos jornais alternativos. Decidi participar efetivamente, ingressando em uma organização revolucionária, mantendo uma militância clandestina.
Era uma militância que exigia disciplina, leitura de textos marxista-leninistas debatidos pelas células e frações da organização, de modo a montar um programa de alcance nacional que se traduzisse em ação política de conscientização, mobilização e reorganização de associações de moradores nos bairros da periferia, de trabalhadores em sindicatos e de estudantes secundaristas e universitários em diretórios, tal o nosso compromisso em derrubar a ditadura que se instalou definitivamente após o AI-5. Mantínhamos diálogo e debates permanentes de documentos políticos com outras organizações marxista-leninistas, inclusive internacionais
Participava diretamente do movimento sindical e do movimento de mulheres em sindicatos dos metalúrgicos, dos gráficos e dos bancários. Participava da redação e edição do jornal clandestino, órgão de conscientização popular. Participava de frações de lutas e debates em defesa dos direitos das mulheres, de reuniões coletivas, juntamente com Ruth Escobar e outras lideranças feministas, na terceira fase da ditadura, de 1976 a 1985. Participava de assembleias que reuniam em torno de 200 mulheres.
Mantive uma vida dupla, entre a legalidade e a clandestinidade
Tínhamos consciência do risco diante da opressão e violência do Estado nos governos de Médici e Geisel, período de maior repressão, quando houve tortura e morte dos opositores e cerceamento das liberdades individuais e de pensamento. Fazíamos campanha pela anistia e finanças para companheiros que continuavam no exílio. Formávamos a retaguarda da organização que tinha vínculos internacionais. Recebíamos treinamento de segurança para assegurar e proteger os companheiros com quem militávamos diretamente. As regras de segurança eram muito severas e prontamente obedecidas, em face do propósito de combate à ditadura e a redemocratização do País. As reuniões internas alongavam-se pela madrugada, quando era possível voltar para casa em segurança, evitando agentes da repressão infiltrados nos movimentos sociais. Endereços não eram compartilhados. Somente a direção da organização detinha o conhecimento da distribuição de cada militante pelas regiões da cidade de São Paulo, que não tinham contato uns com os outros e se encontravam em aparelhos destinados especificamente a reuniões clandestinas.
Fundei, juntamente com outros integrantes de partidos comunistas, o MDB da Lapa, em São Paulo. Continuei meu mestrado em Psicologia Clínica na PUC paulistana, momento político de retomada do movimento estudantil, tempo em que eu mantinha uma vida dupla entre a legalidade e a clandestinidade.
Um mês antes da promulgação da Lei da Anistia, meu companheiro foi perseguido e não voltou no horário que combinamos. Saí do nosso apartamento levando comigo documentos políticos que entreguei a companheiros para encaminhá-los à direção. Dormia em um colchão de bebê na cozinha, sobre folhas de jornal, para espantar o frio. Depois de alguns dias decidimos que eu deveria ir ao Comitê Brasileiro pela Anistia para obter informações. Fui recebida por Airton Soares, que me deu dois números de telefone, um deles de Luiz Eduardo Greenhalg. Fui aconselhada a ligar de uma central telefônica. Ao descer do táxi, percebo dois carros iluminados com quatro homens em cada. Escurecia e a rua era um beco sem saída. Voltei-me para o motorista e disse que estava sendo seguida por motivos políticos, pedi que ele confirmasse pelo espelho retrovisor. Sem se voltar para mim, ele decidiu me manter no carro como medida de proteção. Nesse momento percebi que o treinamento de segurança que havíamos recebido poderia ser aplicado nessa operação de fuga.
As manifestações em favor da anistia e à época da gravidez (Anita, o bebê, não sobreviveu) – Imagem: Antonio Cláudio/Acervo CSBH/FPA e Acervo pesoal
O motorista aceitou a minha orientação. Disse a ele para não demonstrar que tinha conhecimento de que estavam nos perseguindo e somente averiguasse pelo espelho retrovisor. Rodamos duas horas e meia em alta velocidade pelas avenidas para reduzir a velocidade nas travessas. Parávamos para verificar se continuávamos a ser seguidos, até verificarmos que não havia mais risco. Desci do carro em meio ao trânsito e me dirigi a uma outra central telefônica, onde consegui falar com Greenhalg e marcar um ponto. Ele pessoalmente me encontrou e me levou para sua casa, onde estavam reunidos Gianfrancesco Guarnieri e Lélia Abramo. No dia seguinte, me levou ao aeroporto de madrugada. Subi no avião pela pista para não ser identificada.
Ao chegar ao Rio de Janeiro me dirigi ao Jornal do Brasil e entrei sem me identificar. Saí do JB em companhia de Técio Lins e Silva, que me levou a um local, cuja localização desconhecia. O proprietário do apartamento, Álvaro Machado, irmão de Ruth Rocha, me visitava uma vez por semana para me levar alimentos e livros. Mesmo com a promulgação da Lei da Anistia, continuei escondida porque meu companheiro, devido a uma condenação por “crime de sangue”, não foi anistiado. Nosso reencontro aconteceu seis meses depois, em relativa segurança. Franklin e eu nos casamos um dia antes da fundação do PT. De 1980 em diante, fui eleita representante do movimento de mulheres em São Paulo, participei das manifestações pelas Diretas Já e nesse mesmo ano fui escolhida pelo governo cubano a compor a delegação brasileira no Congresso de 300 mulheres para a América Latina e o Caribe. Fidel Castro recebeu especialmente a delegação brasileira para debater o cenário e as perspectivas do Movimento Diretas Já. Em 1987, fui assessora do relator da Ordem Social na Constituinte, quando participei da redação de cinco artigos da Constituição que, como gestora federal do Ministério da Previdência Social e do Planejamento, tive a oportunidade de implantar, da seguridade social aos programas de transferência de renda, e instalar a rede de conselhos deliberativos paritários em todo o território nacional.
Para comentar os 60 anos depois do golpe de 64, procurei agregar o contexto internacional, que exige do atual governo uma atenção especial, devido a uma reversão radical de conjuntura global, que nos dias de hoje se diferencia radicalmente daquela de 64, tornou-se de unipolar a multipolar.
Dormia em um colchão de bebê na cozinha, sobre folhas de jornal, para espantar o frio
Cabem alguns breves comentários sobre o governo anterior nos quesitos de exercício da democracia, de composição do aparelho do Estado, em que a presença de militares no comando foi numerosa, e da consequente composição do novo Parlamento. O presidente do período de 2018 a 2022 transgrediu princípios constitucionais no exercício da democracia, ao estatuir, dentre outras medidas antidemocráticas, o golpe de 64 como uma “revolução” comandada por militares e ao invocar Brilhante Ustra, torturador, como um modelo de patriota, enquanto o atual presidente, democraticamente eleito, foi mantido preso de 7 de abril de 2018 a 8 de novembro de 2019. Nesse período houve um retrocesso histórico. O Estado passou por um desmonte e o Parlamento tornou-se em sua maioria retrógrado.
No âmbito internacional, o presidente anterior defendia um alinhamento incondicional do Brasil aos Estados Unidos e o isolamento do País em relação à comunidade internacional. O atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não se mostra partidário a uma aliança estratégica fixa, muito menos a blocos ideológicos polarizados. O problema mundial não é a falta de “regras”, é a ausência de instituições capazes de interpretá-las de forma consensual, que sejam aceitas pela comunidade internacional. Como disse o alto representante da União Europeia para Política Externa, Joseph Borrel, “a era do domínio global do Ocidente chegou ao fim”. •
*Psicanalista, cientista social, ex-combatente da ditadura, uma das autoras do livro coletivo, organizado por Francisco Calmon e apoiado pelo Forum 21 e Movimento Geração 68, entre outras redes, 60 Anos do Golpe, Gerações em Luta.
Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Memória da resistência’
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