Jornalismo no banco dos réus: Justiça começa a julgar pedido de extradição de Assange

Caso seja enviado aos EUA, o jornalista corre o risco de pegar 175 anos de prisão

Foto: TOLGA AKMEN/AFP

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Criado em 2006, quando Julian Assange tinha 35 anos, o Wikileaks provocou um intenso debate sobre o papel do jornalismo. Na era digital, publicar documentos confidenciais de governos e empresas sem filtrá-los e interpretá-los seria equivalente ao trabalho dos meios de comunicação tradicionais ou poderia ser equiparado à ação criminosa de hackers? O estilo arredio do australiano, obrigado, para sua própria segurança e do projeto, a mudar constantemente de endereço como um fugitivo, foi explorado pelos detratores. Só um espião ou um terrorista se comportaria dessa maneira, acusavam.

 

 

A perseguição, orquestrada a partir de Washington, não cessou desde então, enquanto o Wikileaks marcava uma era: sem os vazamentos, o mundo não saberia dos crimes contra a humanidade cometidos por militares norte-americanos no Iraque e no Afeganistão e nas prisões de Guantánamo e Abu Ghraib, muito menos das tentativas de desestabilização de governos democráticos ao redor do planeta levadas a cabo, não raro com sucesso, pela diplomacia dos Estados Unidos. O estilo de Assange fez escola. Em 2013, o jornalista Glenn Greenwald, fundador do site The Intercept, publicaria os arquivos vazados pelo analista de sistema Edward Snowden sobre a espionagem global operada pela NSA, a Agência de Segurança Nacional dos EUA. No ano passado, Greenwald desmascararia, a partir de mensagens no Telegram reunidas por hackers brasileiros, a parcialidade e os objetivos político-partidários do ex-juiz Sérgio Moro e dos integrantes da força-tarefa de Curitiba na série apelidada de “Vaza Jato”.

As ameaças físicas e verbais passaram a fazer parte da vida de Greenwald, que mora no Rio de Janeiro, houve tentativas claras de censura, mas o jornalista continua a exercer com liberdade a profissão e manteve o direito de ir e vir. Não se pode dizer o mesmo dos demais. Snowden viu-se obrigado a pedir asilo político na Rússia para escapar de um julgamento parcial em seu país. E Assange corre sérios riscos de ser extraditado para os Estados Unidos, onde provavelmente seria condenado no mínimo a 175 anos de prisão por espionagem – há quem não descarte uma sentença de morte. Desde a segunda-feira 7, o jornalista está diante de uma corte criminal em Londres que decidirá seu destino. O histórico não é favorável: em 2011, a mesma Justiça britânica determinou seu envio à Suécia, onde respondia a uma nebulosa denúncia de estupro. À época, Assange e seus aliados temiam uma triangulação: o Reino Unido o mandaria aos suecos que o deportariam aos Estados Unidos. O refúgio na Embaixada do Equador em Londres o protegeu por quase oito anos.

No processo atual, Washington mudou os termos da acusação e denuncia o jornalista por colocar em risco a vida de informantes e agentes secretos ao divulgar seus nomes e não pela publicação de documentos confidenciais. Foi esta a linha de argumentação do promotor James Lewis, representante do governo dos EUA, em seu depoimento na terça-feira 8. A declaração irritou Assange, que interrompeu com gritos de “tolice” a exposição de Lewis. A interferência valeu-lhe uma reprimenda de Vanessa Baraitser, juíza do caso. “Se você interromper os procedimentos e atrapalhar uma testemunha que está dando seu depoimento devidamente, está aberta a possibilidade de continuarmos sem você”, advertiu.


Liderada pelo ex-juiz espanhol Baltasar Garzón, a defesa do fundador do Wikileaks argumenta que o assunto em análise não é o crime de espionagem, mas a liberdade de imprensa. “O agente da perseguição são os EUA, que continuam a fazê-lo. É absolutamente ilegal”, declarou Garzón. “Julian não sobreviverá à extradição”, escreveu em uma rede social Christine Assange, mãe do jornalista. “O jornalismo também não.” Meios de comunicação que partilharam conteúdos obtidos pela plataforma, entre eles The Guardian e The New York Times, acompanham o julgamento com certa parcimônia e defenderam de forma tímida o parceiro.

A sorte de Assange começou a mudar no ano passado. Durante o governo de Rafael Correa no Equador, o jornalista não foi incomodado no refúgio, apesar de ter sido monitorado pelo serviço secreto britânico. Nesse período, iniciou um relacionamento com Stella Morris, advogada sul-africana, com quem teve dois filhos. “Apaixonar-se em um contexto em que todos tentam destruir sua vida foi uma espécie de ato de rebelião”, disse Morris em um vídeo publicado no Twitter. A paternidade, um segredo do casal, só foi revelada como um apelo emocional contra a extradição.

A troca no governo equatoriano em 2017 abriu a oportunidade para os norte-americanos voltarem à carga. Embora tenha chegado ao poder pelas mãos de Correa, seu padrinho político, o atual presidente Lenín Moreno traiu sua base de apoio e alinhou-se a Washington. Após um período de intensa boataria – Assange foi acusado até de sujar as paredes da embaixada com as próprias fezes –, o jornalista acabaria expulso em abril do ano passado e preso instantes depois de ultrapassar os portões do edifício de tijolos vermelhos no Knightsbridge. “Ele violou repetidamente os termos do asilo”, justificou à época Moreno. “Não tem o direito de hackear contas privadas ou telefones, em especial de países que mantêm relações amistosas com o Equador.”

Em busca de uma boa notícia capaz de encurtar a diferença nas pesquisas em relação ao democrata Joe Biden, em vantagem neste momento, Donald Trump pressiona o Reino Unido. Seus apoiadores acusam Assange de ser um “agente comunista” dedicado a destruir as liberdades da América. Há ainda uma dose de vingança. Na fase inicial do processo, em fevereiro, o fundador do Wikileaks declarou em sua defesa que Trump teria lhe oferecido perdão caso negasse a interferência russa nas eleições de 2016, outra das revelações da plataforma que continuam a atormentar o republicano. Diante da situação, o jornalista, assim como Snowden, não deve mesmo esperar um julgamento justo nos Estados Unidos.

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