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Ilustrar possibilidades de existência é urgente

Se diversidade é chamar para o baile e inclusão é chamar para dançar, como disse Vernã Myers, chegou a hora então de escolher a música

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Como desconstruir imaginários? Essa é uma das perguntas que me vêm à mente em todos meus processos de criação. O imaginário da sociedade brasileira sobre a população negra tem origem colonial, como consequência, ou concomitantemente a isso, toda a produção artística e audiovisual hegemônica faz a manutenção de tal imaginário em suas narrativas. Os estereótipos que recaem sobre nossos corpos negros são legitimados na ficção e perpetuam papéis sociais, sujeitando-nos à servidão, à pobreza e à marginalização.

Tire alguns segundos agora para imaginar a figura de um anjo, um herói e uma princesa. Imaginou? Quais deles eram negros? Pois bem, é esse campo que está em disputa e que precisamos vencer. A luta pelo simbólico é uma das mais difíceis de se travar, ela não é palpável e nem mesmo conseguimos identificar o que, ou quem, tem o domínio dela. Mas olhando para o cenário de produção audiovisual no Brasil, talvez possamos começar a encontrar algumas respostas.

Segundo um estudo da Ancine, em 2016, nenhuma mulher negra dirigiu, roteirizou ou foi responsável pela produção executiva de longas comerciais, e dos 142 filmes nacionais lançados naquele ano apenas 2% tinha na direção um homem negro. Ou seja, além de sermos invisibilizados, quando aparecemos, temos nossas histórias superficializadas e narradas por quem não as vivem.

A supremacia branca e o racismo não terão fim enquanto não houver uma mudança fundamental em todas as esferas da cultura, em especial no universo da criação de imagens.

— Bell Hooks

Arte: Taynara Cabral

Nós, criadores e artistas negros, carregamos — ainda que subjetivamente — o peso da responsabilidade da ressignificação de nossas próprias imagens para o outro. É mais que urgente que nossas produções mostrem possibilidades de existências. Os dados que estão na mesa comprovam que nossos corpos estão passíveis de aniquilamento. Segundo o último Atlas da Violência, publicado pelo IPEA, 75,5% das vítimas de homicídio no Brasil são negras e isso não é por acaso.

O desafio que tem me inquietado é, como através da criação de imagens, podemos então fazer o contraponto e mostrar outras possibilidades de existência para quem sempre foi o principal alvo da violência no país? Fato é que temos disputado e tensionado narrativas, até então impostas a nós, a partir da decolonialidade — quando descartamos os sentidos, identidades e imaginários construídos pela branquitude e construímos as nossas própria imagens, a partir da redefinição de quem somos e pelo resgate da nossa ancestralidade.

A batalha de imagens é a mais feroz, a mais

implacável, e o que é pior, contínua. Com essa

batalha, deve-se uma eterna vigilância por parte de

todos nós. Se nós vivemos numa situação em que a

imagem do mundo é ela própria colonizada, então

fica difícil percebermos a nós mesmos a não ser que

lutemos para descolonizar essa imagem.

— Ngugi Wa Thiong’o

O resgate de referências no tempo para sonhar um futuro

Eu acredito no poder da arte que vai além da estética, na luta antirracista todo o campo do conhecimento deve ser utilizado e o design é um deles. Em novembro de 2018, num cenário pós eleições presidenciais no Brasil, onde a vitória do medo e do ódio minaram qualquer tipo de otimismo e esperança que parte de nós, mulheres negras, tínhamos para o ano de 2019, eu precisava criar algo que me fizesse voltar ao eixo, algo em que não só eu, mas outras mulheres pudessem se agarrar, ainda que simbolicamente, para continuarem a viver suas vidas sem serem paralisadas pelo medo e pela desesperança. Foi na construção do calendário “Mulheres do Ontem, do Hoje e do Amanhã” que me reencontrei enquanto artista e tirei o fôlego necessário para continuar produzindo imagens e narrativas de esperança.

Arte: Taynara Cabral

Se ancorar na consciência de quem se é traz a força necessária para ir em frente, por isso a importância de resgatar e trazer para perto aquelas que vieram antes de nós e criaram fissuras para que pudéssemos estar aqui hoje. É lembrar que somos o sonho vivo e o resultado de um passado de muitas lutas e resistência.

Mas a teoria da memória é, na verdade, uma teoria do esquecimento. Não podemos simplesmente esquecer e não podemos evitar de lembrar.

– Grada Kilomba

Angela Davis, Nina Simone, Maya Angelou, Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro, Elza Soares, bell hooks, Sueli Carneiro, Chimamanda Ngozi, Carolina Maria de Jesus, Ivone Lara e Marielle Franco são algumas das mulheres que fizeram, e fazem, de suas vidas uma ferramenta de luta e combate à opressão e à desigualdade racial. Mulheres que ainda ecoam nos nossos dias discursos de resistência e sobrevivência. São essas mulheres que estampam os meses do calendário, reverberando no nosso ontem, nosso hoje e nosso amanhã.

E que continue

Vivemos um tempo com fluxo intenso de produções. Se diversidade é chamar para o baile e inclusão é chamar para dançar, como disse Vernã Myers, chegou a hora então de deixar que a gente escolha a música. Que possamos agora nos apropriar das ferramentas de produção e continuar a ressignificação de nossas histórias. Destes 131 anos de uma abolição inconclusa, estou aqui há 22, tentando me reconstruir ao mesmo tempo em que me reinvento. Sinto que tem muita coisa para colocarmos no mundo e uma coisa é certa: não tem mais volta.

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