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Gosto de fel
As abelhas são as mais recentes vítimas do uso indiscriminado de agrotóxicos de Norte a Sul no Brasil


Depois que a usina de cana-de-açúcar chegou aqui, nunca mais produzimos mel como antes”, afirma o apicultor Edson Ferreira da Silva, morador do assentamento Estrela Dalva, no Pontal do Paranapanema, interior de São Paulo. A aplicação indevida de agrotóxicos nos cultivos tem matado milhões de abelhas – não só na área rural paulista. Nas últimas semanas, morreram mais de 100 milhões em Mato Grosso e 80 milhões na Bahia. Nos dois casos foi identificado o uso do pesticida fipronil, extremamente nocivo para insetos polinizadores.
O fipronil é proibido em diversos países da União Europeia, mas está entre os 48 agrotóxicos liberados no Brasil em fevereiro deste ano pelo Ministério da Agricultura. O atual ministro, Carlos Fávaro, ostenta um currículo que inclui passagens como presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso e vice-presidente da Associação dos Produtores de Soja do Brasil, entre outros órgãos ligados ao agronegócio. CartaCapital procurou o ministério em busca de explicações a respeito da liberação dos produtos, mas não obteve resposta.
O fipronil, proibido em vários países, dizima as colmeias
Segundo Silva, antes da liberação, o fipronil era utilizado em larga escala, contrabandeado do Paraguai. “A gente sabe que os fazendeiros mandam trazer dezenas, até centenas de galões.” O uso em si do pesticida, diz o apicultor, não é o problema. A questão é a utilização disseminada, sem critério e à margem das recomendações da bula. Há cinco anos, Silva perdeu todas as colmeias devido à contaminação oriunda de plantações vizinhas. Depois disso, viu-se obrigado a diversificar a fonte de renda da família e hoje mantém em paralelo cabeças de gado leiteiro. “Eu amo abelhas desde criança, mas, infelizmente, não posso trabalhar só com isso porque a situação aqui na região piorou muito.”
O apicultor Gilvani Bizotto Vanzetto produz mel e própolis no município de Vacaria, interior do Rio Grande do Sul, e afirma que lá a situação não é diferente. São comuns os relatos de pequenos produtores que perderam todas as colmeias do dia para a noite, devido à intoxicação. “Quando a causa da mortandade é o fipronil, nem precisa ser especialista, a gente vê a olho nu a contaminação”, ressalta. “O que mais dói é saber que o agronegócio também depende da polinização, mas os fazendeiros não estão nem aí, e a gente não tem como brigar com os grandes produtores.”
O trabalho das abelhas pode melhorar em até 40% o cultivo das chamadas culturas beneficiadas, entre elas soja, laranja, tomate e amora. Na lista das culturas dependentes, aquelas que precisam de 100% da polinização de insetos, estão abacate, melão, melancia, maçã, berinjela e tomate. Por conta disso, os pequenos produtores acreditam ser possível estabelecer formas saudáveis de convívio com o agronegócio, não sem a presença do Estado para mediar essa convivência, legislação e políticas públicas. “Estamos cada vez mais acuados, ninguém nos enxerga como produtores, e o pessoal do agro não está nem aí em destruir as nossas produções”, reclama Vanzetto.
De flor em flor. As abelhas são fundamentais à sobrevivência de inúmeras lavouras – Imagem: Wenderson Araújo/Sistema CNA/Senar
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Assalariados Rurais de Vacaria, Sergio Poleto, lamenta que o diálogo com os patrões esteja cada vez mais difícil. “O triste dessa história é que esse uso criminoso do veneno não afeta só as abelhas, chega também aos trabalhadores que muitas vezes manipulam essas soluções químicas sem os equipamentos necessários de proteção.” Há poucos dias, conta, presenciou uma cena lamentável em uma loja de equipamentos de segurança. “Vi um fazendeiro chegar e pedir os EPIs mais baratos da loja, a moça indicou várias opções e ele disse: ‘Ah, não importa, qualquer um serve, não sou eu que vou usar mesmo, são meus empregados’. Esta é a triste realidade em que vivemos.”
O Rio Grande do Sul é o estado que mais utiliza agrotóxicos no Brasil, e o impacto negativo tem sido percebido nas mais diversas áreas. Na Câmara Municipal de Vacaria foi criada uma comissão parlamentar para investigar a relação do alto índice de crianças com autismo no município e o uso indevido de fertilizantes. “A situação é alarmante, e ninguém tem sido investigado ou punido”, alerta Poleto. A cidade fica num perímetro cercado por milhares de produções de frutas cítricas, totalmente dependentes do alto uso de defensivos agrícolas. “Ainda não podemos afirmar que esta é a causa, mas é inegável, a saúde dos moradores tem sido gravemente afetada.”
Na Bahia, o apicultor Rafael da Silva Alves descreve uma realidade parecida. E denuncia que o clima de guerra no campo tem escalado outros níveis de violência. Alves integra a Câmara Setorial de Apicultura e Meliponicultura estadual e acompanha de perto as dificuldades de centenas de outros produtores. Ao fim de um dia de trabalho, contou uma história com contornos sinistros: “Acabei de chegar da casa de um apicultor que perdeu tudo por vingança de um fazendeiro. O cara foi picado por uma abelha, ficou com raiva, voltou lá e botou fogo em todas as colmeias. Era a única fonte de renda da família”.
Os apicultores clamam por uma interferência do governo
De acordo com Alves, a intoxicação das abelhas tem causado não só a perda de colmeias inteiras. A produção de mel passou a ser afetada. “Quando a abelha se contamina através da água, ela volta para a colmeia com partículas muito pequenas do veneno e não causa a mortandade do enxame, mas o mel produzido fica com essas partículas.” O fenômeno ainda não foi identificado em todas as regiões do País, mas começa a deixar os apicultores assustados. “A gente soube do caso de um carregamento que estava no porto para ser mandado à Europa e foi identificado mel contaminado. Prejudicou a negociação de todos os outros produtores.” Para o apicultor, o Brasil precisa investir em pesquisa e inovação, de modo a reduzir o uso de agrotóxicos e ampliar o de defensivos biológicos. “O agro se diz tão tecnológico, mas investe muito pouco em ciência e tecnologia. A gente sabe que existem formas de produzir com menos impacto, mas eles não estão interessados.”
A professora Márcia Montanari Correa, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso, não hesita em chamar de guerra biológica o que se passa no campo brasileiro. “Temos observado que muitas vezes há a intenção de prejudicar os pequenos produtores ilhados em meio às grandes lavouras. Muitas pulverizações aéreas são criminosas e os grandes produtores sabem disso”, denuncia. De acordo com dados divulgados pela Associação Nacional para Difusão de Adubos, conhecida pela sigla Anda, as entregas de fertilizantes ao mercado brasileiro em maio de 2023 somaram 3,96 milhões de toneladas, aumento de 21,9% em relação ao mesmo mês do ano passado. O estado de Mato Grosso concentra o maior volume, 25,6%. “Hoje, o agronegócio ocupa muito espaço nos fóruns de decisão e não há lugar para um debate saudável”, afirma a especialista, também pesquisadora do Núcleo de Estudos em Ambiente, Saúde e Trabalho da UFMT. Segundo ela, as denúncias de abuso são cotidianas. “Temos relatos de pulverizações aéreas em regiões habitadas. Há casos de aviões que passam com o jato de veneno até mesmo em cima de escolas, a situação é gravíssima.” Além disso, o volume de veneno tem impactado diretamente a qualidade da água. “Essa contaminação pode ser irreversível, porque, além de tudo, essas partículas químicas atingem os lençóis freáticos.”
Por sua vez, Osmar Malaspina, professor do Instituto de Biociências da Unesp, que estuda os agrotóxicos há mais de 20 anos, acredita na possibilidade de convivência saudável entre o agronegócio e os pequenos produtores. “A situação melhorou muito de uns 15 anos para cá.” Parte do agro, afirma, tomou consciência da necessidade de trabalhar de acordo com os parâmetros de qualidade internacionais, para não prejudicar as exportações. “Hoje existem diversas formas seguras de aplicar os agrotóxicos. Inclusive, tem sido feito o uso de drones em vez de aviões, porque a aplicação é muito mais assertiva.” A pulverização aérea, explica, começou no País com a produção de commodities para exportação, e no início não havia sequer informações sobre a forma correta de manipular as soluções químicas, mas hoje existem cartilhas e um trabalho intenso de formação para quem trabalha na manipulação.
Bandeira. Tatto, em Brasília, e Goura, no Paraná, combatem o uso desregrado de agrotóxicos – Imagem: Orlando Kissner/Alep e Zeca Ribeiro/Ag. Câmara
Apesar das formas mais seguras de pulverização, o fipronil continua a ser considerado um veneno a ser evitado. Não à toa, a aplicação foliar foi proibida em Santa Catarina em 2021, e no Paraná existe um projeto de Lei em tramitação no mesmo sentido. O autor do projeto, o deputado Goura Nataraj, explica que a ideia é estabelecer restrições ao uso. “Hoje, o que a gente percebe é a omissão do governo do estado quando o assunto é fiscalizar os grandes produtores.” E completa: “Os pequenos produtores têm muitas obrigações. Para obter um certificado de produção orgânica, por exemplo, eles precisam atender a uma série de exigências. A gente não vê esse mesmo controle sobre o agronegócio.”
Em âmbito federal, a discussão também começa a ganhar corpo. O deputado federal Nilto Tatto, do PT de São Paulo, defende que o governo federal “puxe para si esse debate” e crie um grupo de trabalho que inclua os ministérios da Agricultura, do Desenvolvimento Agrário, da Indústria e Comércio, da Saúde e da Ciência e Tecnologia. “A dificuldade está na própria composição do Congresso”, diz, pois a Bancada Ruralista reúne quase metade dos parlamentares. Durante a reunião dos deputados do PT realizada na segunda-feira 31, na retomada dos trabalhos legislativos, Tatto propôs a formação de um comitê permanente para debater o assunto. “A ideia é convocar tanto as organizações do agronegócio, a Frente Parlamentar da Agropecuária e as organizações da luta pela reforma agrária, o MST, a Contag, o Movimento dos Pequenos Agricultores, e assim por diante.” •
Publicado na edição n° 1271 de CartaCapital, em 09 de agosto de 2023.
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