CartaCapital
Fio desencapado
Contra o correísmo, os eleitores inclinam-se a eleger o milionário Daniel Noboa, outro representante da velha elite


A trágica experiência do governo do ex-banqueiro Guillermo Lasso, obrigado a encurtar o mandato e convocar novas eleições, não foi suficiente. Em 15 de outubro, caso se confirmem as pesquisas, os equatorianos deverão novamente segurar em um fio desencapado para evitar a volta ao poder do grupo do ex-presidente Rafael Correa. Quem encarna o anticorreísmo desta feita é o milionário Daniel Noboa, herdeiro de uma tradicional família de empresários e políticos. Alvo de uma perseguição judicial aos moldes da Lava Jato, Correa vive exilado na Bélgica e pela segunda vez depara-se com a mesma barreira: seu candidato vence o primeiro turno, mas acaba isolado e derrotado na segunda volta. Foi assim com o jovem economista Andrés Arauz, na disputa contra Lasso em 2021. Parece assim agora com a advogada Luisa González, que tem duas semanas para evitar o pior.
Noboa vale-se da comoção provocada pelo assassinato de um candidato presidencial, Fernando Villavicencio, às vésperas do primeiro turno. O atentado e as ameaças a outros políticos impulsionaram a campanha do milionário, que terminou em segundo, atrás de González, e conquistou o até então improvável direito de disputar a segunda volta. Um tiroteio ainda sob investigação durante uma carreata e o desempenho no debate, no qual apareceu vestido com um colete à prova de balas, foram cruciais para a meteórica ascensão do herdeiro. Enquanto projeta uma imagem de juventude e energia – sua propaganda não cansa de exibir cenas suas na academia –, Noboa angaria o apoio dos setores tradicionais, incluídos os derrotados no primeiro turno, em uma frente improvisada contra o correísmo. “Não dá para chamar de novo um candidato oriundo de uma família historicamente ligada à política e à exploração trabalhista no Equador e de um grupo empresarial que deve milhões ao Fisco, constituindo sua fortuna com base nessas práticas.
Daniel é filho de Álvaro, que concorreu cinco vezes à presidência e é um dos maiores exportadores de banana e um dos homens mais ricos da América Latina”, afirma Paola Cabezas Castillo, deputada reeleita pela Revolução Cidadã e única negra entre os 137 parlamentares. “Somos a alternativa popular para colocar ordem em todos os desajustes das gestões neoliberais dos últimos anos, especialmente a de Lasso.”
Associar Noboa a Lasso é, aliás, a principal estratégia da campanha de González, também alvo de um atentado frustrado, no qual um homem foi preso com explosivos que seriam detonados em um evento. Na atração de parcelas majoritárias dos indecisos, estimados em um terço dos 13 milhões de eleitores, dos migrantes (400 mil) e dos jovens, total de 4 milhões entre 16 e 29 anos, reside a chance de virada da candidata de esquerda, uma vez que os votos de Christian Zurita (16%), Jean Topic (14%) e Otto Sonnenholzner (7%), representantes da direita no primeiro turno, tendem a migrar naturalmente para Noboa. “Luísa tem a estrutura da Revolução Cidadã e se apega ao ‘já fizemos’, transmitindo um anseio ultrapassado para quem busca mudanças. Noboa se atrela à ideia de esperança e me parece que todos os adversários do correísmo se somarão a ele, independentemente do grau de satisfação com essa escolha”, avalia Juan Fernando Flores, conselheiro político de Lasso.
A progressista Luisa González enfrenta dificuldades para ampliar a base de apoio
Em meados de setembro foram divulgados os dados do controverso censo realizado com dois anos de atraso e sob suspeita a respeito da metodologia empregada. De acordo com os números, minorias e populações situadas em áreas fronteiriças e que enfrentam graves vulnerabilidades sociais diminuíram de tamanho, situação que pode influenciar a destinação de recursos e de atenção estatal a esses grupos e regiões debilitados. Movimentos sociais e raciais denunciam um “etnocídio estatístico” de segmentos empobrecidos e vítimas da violência e exigem a revisão do levantamento. Os afro-equatorianos, por exemplo, eram 7,2% em 2010 e agora menos de 5%, baixa de 600 mil cidadãos em uma década.
Segundo outro dado do Instituto Nacional de Estatística, os trabalhadores tiveram queda de 18 dólares mensais em sua renda, na comparação com o mesmo período do ano passado. Nesse contexto, a exploração do trabalho feminino ganha força em várias partes do país, entre elas a região litorânea, onde empresas de pesca preferem a contratação de mães que tenham feito ligadura, conforme relatam trabalhadoras ouvidas por pesquisadores. A razão pela preferência escora-se no fato de as mulheres com filhos suportarem longas e exaustivas jornadas, em nome do sustento da família, e não apresentarem o “risco” da licença-maternidade. Mas nem todos se convencem. “Os eleitores querem esquecer essa divisão de classe que a esquerda sempre quer reforçar. Os Noboa trabalharam com a classe vulnerável assistindo saúde e emprego. Nossa campanha percorre os territórios sem atacar ninguém”, defende o engenheiro Ronald Intriago, morador de Manta.
O mesmo não se pode dizer de diversas comunidades e biomas assediados pelo garimpo ilegal e intenso extrativismo – o petróleo é o segundo produto mais exportado. A ausência de propostas ambientais claras e de diálogo com os povos indígenas e suas organizações em ambas as candidaturas é criticada abertamente, razão pela qual coletivos e seus integrantes pregam o voto nulo ideológico, testado em ocasiões anteriores. “Nenhum dos candidatos apresenta agenda nesse sentido e, portanto, não constituem qualquer garantia para o desenvolvimento e concretização dos nossos direitos e do povo de maneira geral”, lamenta Mariana Yumbay Yallico, advogada e deputada do Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik, uma das raras vozes indígenas da próxima legislatura, composta de 44% de mulheres e prevalência da direita, apesar de a Revolução Cidadã ter elegido a maior bancada (49 parlamentares).
Enquanto as candidaturas reforçam a segurança nos comícios e carreatas, os eleitores esperam o debate marcado para o domingo 1°, último e único embate entre os postulantes à Presidência da República no segundo turno. Depois de a eleição ter sido antecipada por Lasso para escapar de um processo de impeachment, os equatorianos convergem em um desejo: alguns anos de tranquilidade após um longo, turbulento e traumático período de incertezas, cujo resultado foi o empobrecimento do país. •
Publicado na edição n° 1279 de CartaCapital, em 04 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fio desencapado’
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