CartaCapital
Estilhaços e aforismos
O novo trabalho do economista Paulo Nogueira Batista Jr. procura a respiração possível do pensamento


“Economia. Como pode uma ciência que mal e mal consegue explicar o passado ter a pretensão de prever o futuro? Para os economistas, não só o futuro, mas até o passado é imprevisível.”
Esse é um dos aforismos do novo livro do economista Paulo Nogueira Batista Júnior, Estilhaços. Livro escrito, como diz o autor, nas horas de insônia, em uma espécie de segunda vida, na qual ele podia dar vazão às suas inquietações que circulavam fora do horizonte composto por seus conhecidos textos de economia, política e análise de conjuntura. O resultado é uma procura que passa pelo fragmento, pelo aforismo, pelo ensaio e outras formas de escrita dos que procuram, na ausência de sistematicidade, a respiração possível do pensamento.
Há uma questão de estilo importante levantada por empreitadas como essas. A escrita aforismática em filosofia tem uma inflexão moderna que a faz completamente distinta das meditações concisas que encontramos na filosofia antiga. Que se pense em Marco Aurélio e em Epicteto, entre outros. Essas orientações para a sabedoria eram registros de um observador que, como imperador ou como escravo, pôde colocar-se diante do curso do mundo. A primeira pessoa tem a função de uma testemunha que relata, não de uma perspectiva que apreende primeiramente suas próprias limitações, hesitações e sua distância em relação ao fundamento, como será entre os modernos.
É com essas marcas que a escrita aforismática se tornará uma dissecação do Eu e de suas ilusões, como vemos nos moralistas franceses (La Rochefoucauld, La Bruyère, e mesmo Pascal, tão convocados no livro de Paulo Nogueira). Mesmo em Descartes, escrever na primeira pessoa terá o sentido de expor suas errâncias, confrontar-se terras firmes que não serão tão firmes assim, pois nos exporão a subjetividades transcendentes e morais provisórias.
Mas essas marcas de exílio da escrita aforismática serão recuperadas no romantismo para se tornar um perspectivismo assumido como condição para a intelecção do que só se oferece quando as aspirações de sistematicidade e totalidade da razão são depostas. Ele aparece agora como uma forma paradoxalmente mais próxima dos objetos. Forma que sente os impactos dos objetos na própria tentativa de apreendê-los. Por isso, escrita paradoxalmente mais realista. Não apenas o romantismo inicial dos irmãos Schlegel, Novalis, mas principalmente o romantismo mais tardio de Schopenhauer e Nietzsche. É desse romantismo tardio que o livro de Paulo Nogueira se aproxima mais. Nessas horas, aparece o humor de apreensões como Esprit de finesse, s’il vou plaît! A razão analítica ou “o espírito de geometria”, como diria Pascal, é essencialmente incapaz de dar conta de certos assuntos.
Veja-se, por exemplo, como Spinoza aborda o amor. Sua definição chega a parecer simples ironia: “O amor é a alegria conjuntamente à ideia de causa externa”. A amada, designada como “causa externa”, fica irreconhecível. É o que sempre acontece: “O geômetra disseca e, por isso mesmo, não sabe lidar com assuntos como amor, arte, beleza, vida”.
Para além dos aforismos, o livro ainda traz fotos, lembranças e crônicas, criando um horizonte em estilhaços no qual a experiência do que nos afeta constitui um contínuo. •
*Filósofo, escritor e músico.
Publicado na edição n° 1366 de CartaCapital, em 18 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Estilhaços e aforismos’
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