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Dura na queda, Elza Soares deixou de ser estatística para virar referência
Nascida na pobreza extrema e tendo perdido dois filhos por inanição, a cantora equilibrou ascensão com ostracismo e modernizou a música brasileira


“Preciso ser amada, meu filho”, me dizia, em julho de 1999, uma tristonha Elza Soares ao telefone. O motivo do abalo devia-se ao fato de a gravadora Universal Music ter embargado o lançamento de Elza ao Vivo – Carioca da Gema por causa da inclusão de Sá Marina, composição de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, cuja exclusividade havia sido prometida para Ivete Sangalo.
O fato fez com que muitos jornalistas se lançassem na defesa de Elza e questionassem a gravadora por ter partido com tanta fúria sobre uma artista então independente. A Universal voltou atrás na decisão e liberou a faixa. Mas o estrago já havia sido feito. Carioca da Gema saiu em duas versões – uma com e outra sem Sá Marina –, que prejudicou o bom andamento do álbum.
Injustiças como esta fizeram parte da vida de Elza Gomes da Conceição (1930-2022), aquela para quem Chico Buarque escreveu versos como os de Dura na Queda, que ela gravou em 2002: Vagueia, devaneia/ Já apanhou à beça/ Mas para quem sabe olhar/ A flor também é ferida aberta/ E não se vê chorar. Mas ela, como poucas, foi amada por quem soube reconhecer seu talento colossal e compartilhar esse amor em forma de canções e exemplo de vida.
Guilherme Kastrup, produtor de A Mulher do Fim do Mundo (2015), álbum que mais uma vez deu sobrevida à carreira de Elza Soares, compara a trajetória dela com a do trompetista norte-americano Miles Davis (1926-1991): por um punhado de vezes, os dois equilibraram momentos de ascensão com ostracismo. No caso de Elza, sua luta serviu de inspiração para outros artistas.
Ela nunca se contentou em cantar apenas sambas, por mais que fizesse isso como ninguém – uma interpretação próxima ao jazz, repleta de improvisos. Foi também do rock, do funk, do hip-hop e da música eletrônica. Em um mercado no qual se achava que cantoras de ascendência afro-brasileira serviam apenas para cantar samba, Elza impôs sua versatilidade. Hoje em dia, quando uma Teresa Cristina, versada em samba, se debruça sobre o repertório de Roberto Carlos, ela, de alguma forma, segue as trilhas abertas por Elza Soares.
Embora marcada por longos períodos de ausência, sua carreira discográfica equilibra a tradição da música brasileira com o novo. Para cada versão de Meu Guri, de Chico Buarque, e Opinião, de Zé Keti, havia uma preocupação em abraçar o repertório das novas gerações. Do Cóccix Até o Pescoço (2002), que tem direção artística de José Miguel Wisnik, coloca em diálogo músicos de diferentes gerações, indo de Chico Buarque e Caetano Veloso a Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappeletti.
Vivo Feliz (2003) combinava clássicos de Paulo Vanzolini (Volta por Cima) com a música eletrônica do então namorado Anderson Lugão (Rio de Janeiro, Two Tac) e Fred 04, do grupo pernambucano mundo livre s/a (Computadores Fazem Arte).
A cantora foi uma grande voz na luta contra o machismo, o preconceito racial, e até mesmo etário
Em um de seus muitos renascimentos, Elza uniu-se a um time de vários compositores e instrumentistas da nova cena musical de São Paulo e soltou A Mulher do Fim do Mundo (2015), disco que ela definiu como “samba punk”. “Ela inicialmente escutou os arranjos prontos para dar um elogio banal, do tipo ‘parabéns pelo trabalho’. Mas, quando percebeu o que fizemos, afirmou: ‘Vou ter de trabalhar. Mas vou destruir’”, comenta Rômulo Fróes, um dos colaboradores do álbum.
Elza Soares foi uma grande voz na luta contra o machismo e o preconceito racial, e até mesmo etário. “Não irei tocar essa velha decadente”, insultou certa vez um radialista ao receber uma cópia de Do Cóccix Até o Pescoço.
Nos últimos anos, o corpo mostrava as sequelas de um acidente sofrido em 1999, quando caiu de uma altura de 4 metros. Elza dava entrevistas de curta duração porque não conseguia ficar por muito tempo numa determinada posição. As performances eram feitas sentada, num tipo de trono estilizado. Mas nunca reclamou do excesso de apresentações. Sua agenda trazia datas até 2025 e, dois dias antes da morte, no último dia 20, chegou a gravar um DVD no Teatro Municipal de São Paulo.
Ao unir-se ao jogador de futebol Garrincha – os dois, curiosamente, morreram no mesmo dia e mês, com 29 anos de diferença – sofreu preconceito por ele ainda ser casado. Para Elza, sobraram acusações que iam desde destruidora de lares a ter acelerado o alcoolismo do marido. Mas ela, ao contrário, foi, por muito tempo, a principal provedora da família e tentou a todo custo frear o vício do futebolista em bebida. Elza jamais escondeu o passado.
Quando Estrela Solitária, livro de Ruy Castro, foi ameaçado de censura pelas filhas de Garrincha, ela foi uma das primeiras vozes a se lançar contra a proibição. Por várias vezes, a cantora foi vítima de racismo, que ia desde o surrupio do repertório de um disco inteiro para ser dado a uma cantora igualmente talentosa, porém branca, até alguns “nãos” proferidos por gravadoras. Chegou também, durante a ditadura militar, a sofrer ameaças por parte dos órgãos de repressão. Nos anos 1970, depois de sua casa ter sido metralhada, ela e Garrincha foram morar na Itália.
Elza Soares dizia que a vida do artista era feita de muitos “sins” e de muitos “nãos”. Às vezes, o “não” podia ser “uma boa”. No seu caso, o “não” sempre foi um estimulante. Nascida na pobreza extrema e tendo perdido dois filhos por inanição, Elza deixou de ser estatística para virar referência. Modernizou a música brasileira, caiu e levantou por diversas vezes e deixou o mundo gozando de uma merecida popularidade. Sim, Elza foi amada. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1193 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Dura na queda”
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