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Do riso à tal ‘narrativa’

Lula não coloca a democracia acima de tudo 

Nicolás Maduro e Lula durante encontro em Brasília. Foto: Evaristo Sá/AFP
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Em seu livro póstumo, O Sentido da Vida, meu mestre Contardo Calligaris (especialista no estudo, dentre outras coisas, de grupos totalitários), discorre brevemente sobre um elemento-chave na ascensão e na prosperidade dos totalitarismos: o riso. 

Segundo o Calligaris, os totalitarismos teriam menos chances de existir e vicejar “se nós todos, rigorosa e sistematicamente, nunca achássemos graça nas piadas dos idiotas – nunca, mesmo, e sobretudo quando nossa cumplicidade for covarde, como quando a gente se esforça a rir para não se indispor com um chefe ou para não contrariar a expectativa de alguém que imaginamos mais poderoso que a gente.”

Na mosca. Calligaris, assim como outros intelectuais italianos, a exemplo de Umberto Eco e Norberto Bobbio, era um antifascista até a medula. Nesse trecho, a reflexão é remetida a uma discussão que teve com seu pai, um médico, ao que tudo indica, de Milão, que combateu o fascismo sem nunca ter simpatizado com outros projetos totalitários à esquerda, como as experiências do socialismo real do Século XX.  

Seu pai justificou seu desprezo pelo fascismo com base num gradiente estético: a vulgaridade. São, antes de tudo, vulgares. 

Rir dos idiotas é um ato vulgar de lidar com a vulgaridade dos totalitaristas. Por exemplo e, guardadas as devidas proporções, nunca compreenderemos devidamente a ascensão do pensamento autoritário e totalitário da extrema-direita brasileira representada pelo bolsonarismo se não levarmos em consideração a quantidade de risadas direcionadas a maus palhaços do Mal ao longo dos anos que convergiram na eleição de 2018. O principal deles, ironicamente, tem um sobrenome italiano e ainda faz muitos rirem em seu programa no SBT. 

Mas acho que podemos e, efetivamente, devemos ir além do riso. 

Minimizar ou consentir com falas que legitimam personagens e regimes autoritários, seja lá por qual razão for, é, assim como o riso tratado por Calligaris, dar força à mentalidade e aos projetos totalitaristas e tirânicos de poder. Depois de termos “batido na trave” há poucos meses, não deveríamos ter mais espaço, principalmente à esquerda, para  dar alguma chance a o que quer que venha a ferir a democracia e valores liberais como os Direitos Humanos. 

Mas foi exatamente o que se viu na última semana quando o presidente Luis Inácio Lula da Silva não apenas recebeu com pompas estranhíssimas o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, como destilou absurdos sobre o regime venezuelano. Não sem uma quantidade expressiva de ditos progressistas adulando e reforçando esses ultrajes. Num país em que, muito recentemente, o próprio Lula foi preso justamente por ser o favorito à presidência, deveríamos ser mais rigorosos com o que e quem se elogia. 

Lula chegou a dizer que as flagrantes rupturas democráticas do Estado Venezuelano eram um mero jogo de “narrativas”. Para quem não se lembra, essa é exatamente a expressão semanticamente corrompida que o bolsonarismo usou a largo para se contrapor aos fatos incômodos a seu clã. Uma retórica voltada para encobrir a verdade com panos sujos. 

Lula, em todos os aspectos possíveis da coletiva que fez ao lado de Maduro, se igualou ao bolsonarismo. Na forma e no conteúdo. Mudou-se apenas a valência: ao invés da tirania da extrema-direita, é a tirania da extrema-esquerda que merece confetes. Segundo circula na impresa, Lula quis fazer um aceno à sua base mais à esquerda. Um claro sinal (mais um!) de que parte expressiva de nossa esquerda não tem muitos problemas com regimes totalitários – contanto que seja aquele de que gosta. 

O presidente da República fez o que esse tipo de militância adora fazer: esvaziar o conceito de democracia para fazer caber nele qualquer regime autoritário de que se gosta. E aí basta, como disse Lula, entrar na briga das tais “narrativas”. Ou seja, no mundo real de Lula, a realidade emerge apenas de uma disputa de versões. Há algo mais olavista do que isso? Desconheço. 

Essas perspectivas sequer alcançam o simples fato, a verdade incontestável, de que o sonho de Jair Bolsonaro e de seus militares era o de conseguir o que Nicolás Maduro conseguiu conquistar na Venezuela: aparelhar politicamente a Justiça para perseguir e prender opositores, criar um Legislativo paralelo para contornar a representação política eleita pela maioria dos venezuelanos, meter o Exército nas entranhas da vida pública de cada cidadão venezuelano. 

Eu achava que o terceiro governo Lula se definiria por dois princípios básicos: a reconstituição dos pilares do Estado brasileiro deixado em ruínas pelo ex-presidente e a defesa da democracia e da República acima de tudo.

Até aqui, acertei em relação ao primeiro princípio. Estou errando feio em relação ao segundo. 

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