CartaCapital
Destruição divina
Uma comunidade religiosa oriunda da Holanda é investigada por desmatamento ilegal na Amazônia peruana


Não fosse pela fecundidade exuberante da Floresta Amazônica que a cerca, Wanderland quase poderia ser um trecho de terras agrícolas holandesas do século XIX. Uma trilha enlameada reta corta fileiras de currais espaçados com casas e celeiros perpendiculares. Uma manhã típica começa quando charretes puxadas por cavalos, conduzidas por meninos sorridentes de cabelos loiros e olhos azuis, recolhem tonéis brilhantes de leite fresco nos portões da fazenda para serem transformados em queijo. O nome dado a esse idílio pastoral escavado na densa folhagem da selva não parece precisar de tradução, mesmo do Plautdietsch, a mistura de baixo alemão com holandês falada por seus habitantes – algo como “terra da amplidão”.
Mas há inquietação nesse paraíso rústico. É uma das três comunidades menonitas investigadas por promotores peruanos por denúncias de desmatamento ilegal de mais de 3.440 hectares (34 quilômetros quadrados) de floresta tropical nos últimos cinco anos. O embate com a lei tem alarmado a comunidade de cerca de cem famílias que temem perder a terra onde fizeram seu lar. Abraham Thiesen, 44 anos, que chegou ao Peru com sua mulher e seis filhos em 2015, está entre as várias centenas de moradores do recluso grupo cristão anabatista com origem na Frísia do século XVI que migrou da Bolívia, juntamente com outros de Belize, onde têm populações estabelecidas há muito tempo. Thiesen, presidente da associação menonita Wanderland, diz que eles adquiriram a terra de boa-fé para fins agrícolas, no entendimento de que seriam concedidos títulos legais uma vez que a área fosse desmatada para agricultura.
Mas essa explicação foi rejeitada pelo promotor ambiental José Luis Guzmán. “Não se pode desmatar e depois pedir licença. Não funciona assim. Para fazer o desmatamento lá, remover a cobertura vegetal de árvores e florestas, é preciso uma licença do Estado e, neste caso, eles não tinham licença”, disse Guzmán em seu escritório em ruínas em Pucallpa, capital de fronteira na região amazônica de Ucayali, no Peru. O promotor abriu uma investigação sobre se o grupo cristão deve ser formalmente acusado de desmatamento.
Thiesen rebate: “Viemos aqui para ficar”. Famílias inteiras, geralmente com quatro a sete filhos, se desenraizaram de suas comunidades nas extensas planícies da Bolívia e investiram suas economias nas novas terras nas profundezas da Amazônia peruana. “Não estamos pensando em nos mudar, porque estamos estabelecidos aqui”, acrescentou Thiesen, seu rosto corado emoldurado pelo típico chapéu de palha de caubói usado por todos os homens da comunidade. “Nossa esperança é de podermos trabalhar pacificamente, porque onde vamos conseguir o suficiente para comer se eles não nos deixarem trabalhar a terra?” A agricultura é um princípio de sua fé, explica Thiesen. Eles acreditam que Deus ordenou que trabalhem a terra para viver desde que Adão e Eva foram expulsos do Jardim do Éden.
O Ministério Público do país cerca Wanderland, território menonita no meio da selva
Esses menonitas da Velha Ordem, a mais ortodoxa da seita pacifista, que se espalhou do Canadá à Índia em busca de isolamento e grandes extensões de terra para cultivar, podem ter entrado em conflito com a notória informalidade e corrupção muitas vezes ligada à titulação de terras na Amazônia peruana. Eles dizem ter comprado inicialmente 500 hectares (5 quilômetros quadrados) de terra, em 2015, perto de Pucallpa, que trocaram com um rico comerciante de madeira por mais de 3 mil hectares de floresta tropical onde as três comunidades estão estabelecidas. O trecho remoto de selva se adequava à preferência dos menonitas por viver isolados. The Guardian viajou 14 horas de barco pelo Rio Ucayali e dirigiu por mais uma hora por uma trilha lamacenta para visitar a comunidade que fica a meio caminho entre Pucallpa e Iquitos, a maior cidade do mundo com acesso apenas por barco ou avião.
O assentamento mais próximo das novas colônias menonitas, Tierra Blanca, é um pobre posto avançado ribeirinho que sofre ocasionais explosões de violência por estar situado numa rota de tráfico de cocaína. Lá, a população local dá as boas-vindas, com curiosidade e diversão, aos colonos vestidos de macacão e às mulheres em longos vestidos de capa. Os veteranos dizem que décadas de extração removeram qualquer madeira tropical valiosa da floresta onde as comunidades vivem agora. “Era (floresta) secundária, porque os madeireiros já tinham usado toda a madeira”, disse Thiesen. “Não trabalhamos com madeira. Preferimos o solo, trabalhar a terra”, acrescentou, embora admita que a madeira que sobrou foi usada para construir “casas, escolas, igrejas, pontes, algumas coisinhas”.
Legalmente, é uma distinção importante. A floresta secundária está um passo mais perto do purma, arbustos que crescem após o corte das árvores. O purma pode ser legalmente transferido para uso agrícola, enquanto derrubar floresta primária é ilegal.
Matt Finer, especialista em pesquisa sênior da ONG Amazon Conservation, discorda da afirmação de Thiesen. “A área foi explorada seletivamente, assim como grande parte da Amazônia, mas ainda é floresta primária.” Os assentamentos menonitas tornaram-se a “nova principal causa do desmatamento em grande escala no Peru”, acrescenta Finer. “No total, temos agora documentado o desmatamento de 3.968 hectares em quatro novas colônias estabelecidas na Amazônia peruana desde 2017.” Três dessas colônias estão em Tierra Blanca. Ambientalistas temem que isso possa ser apenas o começo da invasão menonita no Peru. Imagens de satélite mostram o desmatamento para outro assentamento, também em Loreto, vasta região amazônica do tamanho da Alemanha. Um estudo de 2021 no Journal of Land Use Science diz que os menonitas têm 200 assentamentos em sete países da América Latina e ocupam coletivamente mais terras do que a Holanda.
O Peru perdeu um recorde de 2.032 quilômetros quadrados da Amazônia devido ao desmatamento em 2020, número quase quatro vezes maior do que os 548 quilômetros quadrados perdidos em 2019, segundo o Ministério do Meio Ambiente. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1226 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Destruição divina “
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