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Caso encerrado?

A PF apresenta os mandantes do assassinato de Marielle, mas ainda deve fazer uma devassa no “ecossistema criminoso” do Rio de janeiro

Caso encerrado?
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Os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, peixes graúdos da política fluminense, são apontados como “autores intelectuais” do crime. Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil, teria sabotado investigações – Imagem: Carl de Souza/AFP, Alerj, Ag. Câmara e Agência Brasil
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“Espero que avance muito mais. Ainda não tem a história completa, a motivação não está clara. Então, ainda não fechou.” As palavras de Ágatha Arnaus, viúva do motorista Anderson Gomes, resumem o sentimento dos familiares das vítimas – e de boa parte do Brasil – quanto ao desfecho das investigações sobre as mortes de seu marido e da vereadora Marielle Franco. A conclusão do caso foi anunciada no domingo 24 pelo Ministério da Justiça, cinco dias após a delação premiada do sicário Ronnie Lessa ter sido homologada pelo Supremo Tribunal Federal e seis anos depois do crime. A possibilidade de que as investigações ainda não tenham chegado ao fim gera, porém, muita expectativa, sobretudo após a confirmação da participação de peixes graúdos na trama criminosa.

Identificados pela Polícia Federal como “autores intelectuais” do duplo homicídio, os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro e deputado federal pelo União Brasil, respectivamente, gozam de grande prestígio na política fluminense. Já o ex-chefe da Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, acusado de participação no crime e de posterior sabotagem do inquérito, é conhecido por seu trânsito e diálogo com diversas forças políticas do estado. Com os três em presídios separados por determinação do STF, não será surpresa se novos elementos ou delações ganharem a luz do dia: “O inquérito tem 470 páginas e muito provavelmente vão se abrir outros flancos. Esse crime esbarra em vários outros e expõe uma cena criminosa muito profunda e enraizada nas instituições do Rio de Janeiro”, afirma a jornalista Fernanda Chaves, única sobrevivente do atentado que matou Marielle e Anderson.

O delegado preso foi recomendado ao general Richard Nunes pelo Comando Militar do Leste, chefiado por Braga Netto durante três anos – Imagem: Tânia Rêgo/ABR

O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, não descarta a possibilidade, mas também não a vislumbra por ora. “É claro que podem surgir novos elementos, mas neste momento os trabalhos foram dados como encerrados.” Já seu antecessor, Flávio Dino, hoje no Supremo Tribunal Federal, avaliou, durante o julgamento que referendou a prisão dos suspeitos, que “a leitura das peças processuais revela a possibilidade de configuração de um autêntico ecossistema criminoso” no Rio. Segundo o magistrado, isso “pode gerar a continuidade das investigações em um ou mais inquéritos”. Viúva de Marielle, a vereadora Monica Benicio, do PSOL, diz que Lewandowski “fez um pronunciamento que foi prometido não apenas a nós familiares, mas à democracia brasileira”, mas também não está satisfeita: “O voto do ministro Dino fala muito do que ainda há pela frente. Essa investigação revela que, de fato, existe um ecossistema criminoso que se articula com a política institucional. É o crime institucionalizado dentro do Estado. Isso não só pode, como deve, gerar a continuidade da investigação criminal”.

No campo da esquerda, a ideia é esmiuçar a proximidade do clã Brazão com o clã Bolsonaro. Nas últimas eleições, Chiquinho Brazão foi o cicerone de Bolsonaro em atividades de campanha realizadas nas comunidades de Rio das Pedras e Gardênia Azul, redutos políticos dos Brazão. Domingos e o irmão mais velho – o deputado estadual Pedro Brazão – também declararam apoio ao ex-capitão na disputa contra Lula no ano passado. Outro alvo é o ex-ministro Walter Braga ­Netto, que foi vice na chapa derrotada de Bolsonaro e era chefe da intervenção federal na segurança pública do Rio em 2018, ano em que Rivaldo Barbosa foi nomeado chefe da Polícia Civil e Marielle e Anderson foram assassinados.

Braga Netto agora tenta se esquivar da responsabilidade pela nomeação de um sabotador na Polícia Civil

A bancada do PSOL na Câmara solicitou à Procuradoria-Geral da República a abertura de uma investigação para apurar as relações do general Braga Netto com o delegado, que era chefe da Delegacia de Homicídios da Capital e foi alçado à Chefia de Polícia na véspera do crime: “Importa salientar que Braga Netto foi alertado que Barbosa era suspeito de ter ligações com a milícia carioca e mesmo assim bancou sua indicação. Braga Netto deu o poder necessário para o artífice e uma das cabeças pensantes da execução de Marielle Franco”, diz o documento assinado pelos deputados Henrique Vieira, Célia Xakriabá e Érica Hilton.

Em nota, a defesa de Braga Netto repetiu a manjada tática bolsonarista de colocar em cima de subordinados a culpa por erros ou malfeitos. Afirmou que, embora tenha assinado a nomeação de Barbosa, este teria sido indicado pelo então secretário de Segurança Pública, o também general Richard Nunes. “Por questões burocráticas, o ato administrativo era assinado pelo Interventor Federal que era, efetivamente, o governador na área de segurança pública.” O detalhe omitido na nota é que o nome do delegado havia sido recomendado pelo Comando Militar do Leste, que naquela ocasião era chefiado havia três anos por Braga Netto. Já Nunes, um dos oficiais a não endossar as pretensões golpistas de Bolsonaro em 2022, não pode ser considerado hoje um aliado do bolsonarismo.

Barbosa disse aos pais da vítima e ao ex-deputado Marcelo Freixo que a resolução do crime era uma “questão de honra” para ele – Imagem: Tânia Rêgo/ABR

Ainda não há sinalização da estratégia de defesa que adotarão os irmãos Brazão, agora presos. A julgar pela celeridade com que a direção do União Brasil discutiu e aprovou, por unanimidade, a expulsão do deputado Chiquinho no mesmo dia de sua prisão, o que parece certo é que, ao menos em um primeiro momento, ambos serão repudiados tanto por adversários quanto por aliados. Outro sinal dessa tendência foi dado pelo relator do caso na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, deputado Darci de Matos, do PSD, que na terça-feira 26 apresentou um parecer que valida a prisão de Chiquinho. Em seguida, a análise da CCJ foi interrompida por um pedido de vista apresentado pelos deputados Gilson Marques, do Novo, ­Roberto Duarte, do Republicanos, e Fausto Pinato, do PP, que terão dois dias para devolver o parecer para votação no próprio colegiado. Após a análise na CCJ, o texto seguirá para o plenário da Câmara. São necessários 257 votos para que a prisão seja mantida ou revogada.

Já Domingos Brazão teve um pedido de impeachment contra si protocolado no TCE do Rio a pedido do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União. Em seu despacho, o subprocurador Lucas Furtado sugere que seja analisada a possibilidade de afastamento cautelar de Brazão das atividades do tribunal estadual e também de sua aposentadoria compulsória ao final da apuração interna. Brazão já havia sido afastado de suas funções em 2017, suspeito de receber propinas em contratos firmados pelo governo do Rio, mas retornou ao cargo no ano passado por decisão da Justiça. Assim que retornou ao TCE, o conselheiro requereu o recebimento do valor correspondente a 420 dias de férias não tiradas nesse período, em um total de 581 mil reais. Além de Domingos e Chiquinho, o clã conta ainda com o deputado estadual Pedro Brazão, irmão mais velho, e com o vereador Waldir Brazão, que era chefe de gabinete de Chiquinho, adotou o nome da família e se elegeu nas eleições de 2020.

“Estamos diante da ponta de um iceberg e não devemos nos contentar com respostas pontuais”, diz Monica Benicio, viúva de Marielle – Imagem: Câmara Rio

A revelação da chocante participação de Barbosa e Giniton Lages, chefe da Delegacia de Homicídios da Capital por ele indicado, na trama criminosa é vista como uma oportunidade de se enfrentar a histórica corrosão das instituições de Estado pelo crime organizado no Rio de Janeiro, embora esta seja uma tarefa complexa. “Tudo que está envolvido no assassinato de Marielle e Anderson constitui uma revelação da profundidade, magnitude e extensão em que se tem dado a degradação das instituições do Rio de Janeiro, em particular das polícias e da justiça criminal de uma maneira geral”, diz o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares. Mas que não se alimentem ilusões: “A maior parcela das autoridades responsáveis e das lideranças políticas no Rio é parte do problema e está envolvida com essa dinâmica há muitos anos. Portanto, seria muito ingênuo supor que daí proviesse a mudança”. O especialista avalia, porém, ser possível iniciar um processo em busca de soluções: “Devemos trazer à sociedade a necessidade de irmos muito mais fundo, não só na busca da punição de culpados, mas na transformação das condições que tornaram um caso como o da Marielle possível”.

Soares afirma que há uma “degradação institucional autoconstruída”, uma espécie de “doença autoimune” na segurança pública do Rio. “Não se trata do crime penetrando a polícia, não se trata de organização criminosa já constituída que planeja a infiltração, embora existam personagens da milícia que se candidatam para ocupar espaços no Legislativo e até no Executivo. Na maior parte dos casos, o que você tem são policiais civis ou militares que buscam associação com protagonistas do crime, que agem como criminosos diretamente e passam a funcionar eles próprios como criminosos. É um processo de degradação interno.” O antropólogo diz que o caso do delegado Barbosa “é uma expressão hipertrofiada”­ de um ­processo contínuo de envolvimento da polícia com a corrupção e com a violência nas suas formas mais despóticas: “Isso leva ao poder Wilson Witzel e Cláudio Castro, leva ao poder Jair Bolsonaro, mas também havia levado ao poder Sérgio Cabral com as suas tinturas liberal-democráticas. São diferentes modalidades, mas essencialmente trazem esse amálgama de força e domínio político com base em extorsão, chantagem e assassinato”.

“O estado falhou o tempo todo”, avalia fernanda chaves, a única sobrevivente do atentado

Para o sociólogo Ignacio Cano, o crime e o comprometimento de Barbosa, se comprovados, reforçam que as relações da polícia fluminense com o crime organizado acontecem há muito tempo e podem envolver muitos crimes: “A gente sabe que o Escritório do Crime funcionou durante anos sem ser importunado, justamente pelo comprometimento da Polícia Civil. Ninguém telefona para um delegado e pede ajuda para matar alguém se não houver uma relação consolidada, se isso já não foi feito outras vezes. Isso indica um comprometimento muito alto de todas as esferas de poder no Rio de Janeiro”. Analista da segurança pública no Rio de Janeiro há mais de 20 anos, Cano afirma que o estado perdeu “uma grande oportunidade de botar muita coisa a limpo” quando o ex-governador Sérgio Cabral se dispôs a fazer delação premiada em 2021: “Ele teria muita coisa a dizer sobre esse comprometimento em todas as esferas mas, infelizmente, sua delação não se concretizou”. Mesmo sem garantia alguma de que o Caso Marielle por si só vá sanar o sistema, acrescenta Cano, ele pode representar o início de um processo de limpeza nas polícias e na política fluminenses: “Mas, certamente, estaremos ainda muito longe do final”.

Fernanda Chaves avalia que o Rio vive hoje sob a ação de máfias infiltradas em todo o poder público. “Os mandantes da morte da Marielle têm braços no Tribunal de Contas, na Câmara dos Vereadores, na Assembleia Legislativa, no Congresso Nacional. Não é um policial envolvido, é o chefe da Polícia Civil”, enumera. A jornalista observa que, para além da possível motivação do crime estar vinculada à grilagem de terras pela família Brazão, como sugerem as investigações, é como se o Rio tivesse matado Marielle: “O Estado falhou miseravelmente o tempo inteiro. Falhou quando não protegeu uma autoridade saindo do trabalho, circulando pela zona central da cidade, do lado da prefeitura e de grandes prédios. Ela foi assassinada às 9 da noite, no meio da rua, em um estado que estava sob intervenção federal, isso é muito importante frisar”.

Por ora, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, dá o caso como encerrado. Já seu antecessor Flávio Dino, hoje no STF, defende a continuidade das apurações em “um ou mais inquéritos” – Imagem: Tom Costa/MJ e Gustavo Moreno/STF

E o Estado seguiu falhando, acrescenta Chaves, “quando atuou para que o crime não fosse elucidado, quando duas promotoras alegaram interferência e nada aconteceu, quando provas sumiram, quando foram plantadas testemunhas e quando o delegado do caso foi mudado por cinco vezes ao longo do período”. Já Monica Benicio diz que o que está em jogo vai muito além da família Brazão e também da própria Marielle: “Estamos falando de uma arquitetura de poder que envolve a estrutura política, legislativa e judiciária no nosso estado e que se espraia em inúmeros arranjos territoriais. Precisamos entender que estamos diante da ponta de um iceberg e não nos contentarmos com respostas pontuais para arranjos estruturais. Me comove muito dizer isso, porque o assassinato da minha esposa não é só sobre o assassinato da minha esposa. É sobre o Rio de Janeiro com mais justiça social que eu quero ver nascer, que ela queria ver nascer. E isso só começa aqui se entendermos que não acaba aqui”. •

Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Caso encerrado?’

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