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Cara ou coroa

As consequências globais da mais imprevisível eleição dos EUA

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A poucos dias das eleições, o cenário segue indefinido. Se perder, Trump está pronto para colocar em dúvida o resultado – Imagem: Sergio Flores/AFP e Charly Triballeau/AFP
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Nas últimas semanas, o dólar experimenta uma onda de valorização mundial. O fenômeno coincide com a recuperação de Donald Trump nas pesquisas, após a candidatura da adversária Kamala Harris ter perdido os ares de novidade e a intensidade dos primeiros dias. Os mercados financeiros começaram a precificar um eventual retorno do republicano à Casa Branca. A “lógica” é a seguinte: as políticas econômicas protecionistas defendidas pelo ex-presidente elevariam a inflação nos Estados Unidos e interromperiam o ciclo de cortes nos juros iniciado pelo Federal Reserve, o Banco Central norte-americano. Taxas mais altas atraem mais investidores em busca da segurança da moeda referência. Logo, a corrida ao dólar proporcionará imensos lucros para quem se prevenir.

Esse é um, talvez o menos importante, dos efeitos das eleições presidenciais de 5 de novembro sobre o planeta. A depender do vencedor, o mundo experimentará mais do mesmo ou terá diante de si o risco de uma hecatombe nas relações internacionais e na segurança global. Em menos de um mês, a vantagem de até 4 pontos porcentuais em alguns estados de Harris sobre Trump caiu para menos de 1 ponto, segundo a média das sondagens compiladas pelo jornal The New York Times na terça-feira 29. No voto popular, indica uma pesquisa do mesmo jornal encomendada ao Siena College e divulgada na sexta-feira 25, há um rigoroso empate: 48% a 48%.

Ao contrário de certa crítica que se pretende progressista, Trump e Harris não são a mesma coisa. Há diferenças fundamentais em relação aos direitos civis e respeito às regras democráticas. Há, neste caso, um mal menor e um maior. Se o apoio do governo Joe Biden, de quem a democrata é vice, chancela o massacre na Faixa de Gaza e sustenta no poder o primeiro-ministro israelense, Benjamin ­Netanyahu, com o republicano seria ainda pior. Trump, em mais de uma ocasião, defendeu o envio de palestinos a campos de refugiados no deserto do Sinai e o confisco das terras pelos colonos judeus. Sob seu comando, não seria improvável um conflito direto com o Irã, de consequências imprevisíveis. No primeiro mandato, ele deu demonstrações dessa disposição.

O republicano promete deportação em massa dos imigrantes. Recentemente foi além. Sugeriu pena de morte aos ilegais

Em relação ao Brasil, André Pagliarini, professor de História e Estudos Internacionais na Universidade ­Estadual da ­Louisiana, acredita que uma vitória de Harris tenderia a manter o ­atual nível de cooperação entre Brasília e ­Washington estabelecido por Biden e Lula, particularmente em temas como o combate às mudanças climáticas, o fortalecimento dos direitos trabalhistas e a defesa das instituições democráticas. Uma vitória do republicano, por sua vez, traria novos desafios à política externa lulista. “Trump é muito mais imprevisível e se a implementação de tarifas sobre importações de fato acontecer, pode ter efeitos muito negativos para o ­País, que seria obrigado a acelerar os esforços em diversificar suas alianças econômicas.” Ainda assim, diz Pagliarini, embora o ex-presidente dos EUA e Lula estejam em campos políticos opostos, há espaço para um relacionamento produtivo. “O ex-presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador, por exemplo, conseguiu manter um diálogo funcional com Trump, focado em interesses econômicos comuns. Com seu estilo forte e carismático, Lula tem habilidade política para navegar nessas águas.”

Segundo Daniel Kersffeld, analista de política internacional e pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica da Argentina, para Washington existem ao menos duas Américas Latinas: de um lado, a América Central e o Caribe e, do outro, a América do Sul. “E a influência dos Estados Unidos é indiscutivelmente mais forte no primeiro grupo, com o México mantendo um certo nível de autonomia graças à sua economia robusta e à estratégia do governo de López Obrador, que buscou equilibrar as relações com Washington e Pequim.”

Para o analista, a vitória de Trump significaria uma drástica redução do apoio econômico à América Central e um endurecimento nas políticas de imigração e segurança. “A migração e o tráfico seriam tratados como uma única agenda”, avalia. No cenário sul-americano, ele não acredita em grandes mudanças caso a democrata seja eleita, mas alerta para o potencial de políticas protecionistas sob um governo Trump, o que poderia desestabilizar ainda mais as economias locais. “A construção da relação entre Biden e Lula foi consolidada não só pelo peso da economia brasileira, mas por uma certa capacidade de ordenação e alinhamento que poderia oferecer no contexto sul-americano, onde a principal questão a ser resolvida é a situação política na Venezuela, após diversas mediações entre o governo de Nicolás Maduro e a oposição. Se Harris vencer, o mais provável é o Brasil exercer esse papel, como uma espécie de eixo ordenador que se manterá ao longo do tempo e terá até uma validade ainda maior, devido à chegada ao governo argentino do ultradireitista Javier Milei e sua clara ligação com Trump e Bolsonaro.”

Para os palestinos, a diferença entre Harris e Trump pode ser maior do que se imagina. A Ucrânia sabe o que virá. A cooperação entre Lula e Biden prosseguirá em caso de vitória democrata? – Imagem: Miguel Medina/AFP, Adam Schultz/Casa Branca Oficial e AFP

Caso Trump vença, diz Kersffeld, quem se habilita à posição de interlocutor privilegiado da Casa Branca é o presidente argentino, que, como Bolsonaro, não se furta a fazer declarações públicas de amor incondicional ao republicano. Em fevereiro, o empresário e Milei dividiram os holofotes na Conferência Anual de Ação Política Conservadora em Maryland. Nos bastidores do evento, o “libertário” portenho libertou-se dos protocolos e comportou-se como um fã diante de um astro do ­rock. Ao ver o republicano, gritou “presidente!”, forçou um abraço apertado e pediu fotos, tudo registrado nas redes sociais da campanha do magnata. “Milei vai valer-se das afinidades ideológicas e discursivas e, principalmente, do seu interesse em se tornar uma espécie de ‘Trump’ sul-americano, com influência e capacidade de atuação fora da Argentina.”

Quanto à Venezuela e Cuba, Kersffeld é categórico em dizer que, levando em consideração o primeiro mandato, um segundo governo Trump endureceria ainda mais as relações com os dois países. “A oposição na Venezuela poderia ser fortalecida, enquanto o bloqueio a Cuba seria aprofundado, pois não há uma estrutura de oposição forte como na Venezuela”. Em contraste, um mandato de Harris eventualmente buscaria caminhos mais conciliatórios para lidar com a situação venezuelana, também com o objetivo de reduzir o fluxo de migrantes para os EUA. “Quanto a Cuba, o caminho adotado dependerá do nível de força interna que a atual vice alcançar e da sua relação com as linhas internas do partido e com alguns dos principais representantes dos exilados cubanos.”

De acordo com Eric Hershberg, professor da American University e especialista em América Latina, América Central, Cuba e Imigração, além das relações bilaterais, a imigração tornou-se um ponto central nas discussões. “O fracasso do governo dos EUA em atualizar seu sistema de imigração disfuncional provavelmente persistirá, dada a oposição do Partido Republicano a qualquer reforma imigratória plausível.” Hershberg prossegue: “Enquanto um governo Harris possivelmente tente limitar o número de migrantes que buscam asilo e encontrar mecanismos para fornecer status legal a várias categorias atualmente sem documentos, um governo Trump vai esforçar-se para acabar com o asilo por completo e em expulsar o máximo possível de migrantes”. Não só. No comício no Madison Square Garden, em Nova York, comparado à estética dos apoteóticos eventos nazistas, o ex-presidente sugeriu aplicar a pena de morte a quem entrar no país de forma illegal.

As atribulações na política externa iriam além. A guerra entre Rússia e Ucrânia, iniciada em fevereiro de 2022, ganhará contornos diferentes a depender do vencedor das eleições nos EUA. ­Keith ­Darden, professor da ­American ­University, especialista em relações EUA–Rússia, afirma que, se ­Harris se tornar presidente, é bem provável a manutenção do apoio ao esforço de ­Volodymyr Zelensky contra Vladimir ­Putin. “No curto prazo, a democrata tenderia a manter o investimento e a assistência militar, especialmente com um conselheiro de segurança nacional que se concentre na Europa e a possibilidade de Liz Cheney assumir um cargo relevante no gabinete.” Cheney é ex-deputada republicana e filha do ex-candidato à Presidência Dick Cheney que se tornou uma das mais contundentes críticas de Trump, sobretudo após a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021. Conhecida por seu forte apoio à assistência militar à Ucrânia, a parlamentar poderia ser uma influência significativa nesse cenário. À medida que o tempo avança, a realidade deve, no entanto, impor-se. A estratégia atual de manter o conflito em busca de uma improvável derrota russa e do desgaste da liderança de Putin parecem cada vez mais perto do limite. “Conseguir apoio do Congresso para mais assistência militar sem metas claras para o fim do conflito será cada vez mais difícil”, afirma.

Trump compara os protestos pró-Palestina e contra o massacre perpetrado por Israel às arruaças dos supremacistas brancos em Charlottesville

Trump tem outra ideia. “Ele e seus aliados querem encerrar o conflito de forma imediata, por meio de um cessar-fogo que divida a Ucrânia ao longo das linhas de frente atuais”, comenta o professor. A proposta inclui ainda a promessa de adiar a adesão dos ucranianos à Otan, o tratado militar do Ocidente, e uma redução substancial na assistência bélica e financeira a Kiev. Embora a Rússia não esteja inclinada a aceitar esses termos, a relação pessoal entre Trump e Putin, diz Darden, facilitaria uma negociação entre as partes. Resta saber como reagiria a Europa, parceira júnior dos EUA. Como no primeiro mandato, Trump deixou claro que os europeus precisam “se virar” em questões de defesa, ou seja, aumentarem os gastos militares, cuidarem das próprias fronteiras e se tornarem menos dependentes da muleta de Washington. “A possibilidade de um governo Trump poderia ter consequências drásticas. É provável que ele limite ou retire o apoio dos EUA, pressionando a Ucrânia a aceitar os ganhos territoriais russos.”

Mesmo no Oriente Médio, onde as tragédias são colhidas diariamente e a orientação política do ocupante do Salão Oval não parece fazer diferença, o que está horrível sempre pode piorar. Basta uma análise do primeiro mandato de Trump para constatar como o ex-presidente perturbou posições políticas de longa data na região. No centro dessas mudanças políticas estava Israel. Michel Gherman, pesquisador do Centro de Estudos do Antissemitismo da Universidade de Jerusalém e professor da Universidade do Rio de Janeiro, destaca que o republicano recebeu, e continua a receber, grande apoio do movimento sionista evangélico dos EUA, organização que tem uma grande força na política conservadora. “O isolacionismo de Trump pode entregar o controle das questões da região a uma extrema-direita evangélica que o apoia, um cenário que pode significar um desastre para israelenses e palestinos.”

Ficou claro desde o início que Trump planejava fazer movimentos para energizar a base evangélica superconservadora. “Se eleito, ele provavelmente vai priorizar suas conexões com grupos evangélicos que apoiam Israel, enquanto deixa de lado preocupações regionais mais amplas. Isso pode levar a uma mudança drástica no engajamento dos EUA no Oriente Médio, negligenciando dinâmicas e questões críticas que exigem atenção. Uma abordagem que pode exacerbar as tensões e desestabilizar ainda mais uma região instável.”

Durante o primeiro mandato, o republicano priorizou estreitar e fortalecer os laços com Israel e a Arábia Saudita, enquanto isolava o Irã. Atualmente especula-se até se as autoridades na órbita trumpista não consideram adequadamente as implicações de suas ações, arriscando mais alienação e conflito na região. Durante um debate em julho, Trump não escondeu como trataria a atual mobilização em massa pró-palestina nas ruas. “Temos os palestinos e temos todo mundo se revoltando por todo lugar. Você fala sobre ­Charlottesville. Isso é cem vezes Charlottesville”, disse ao comparar o ativismo contra o massacre israelense ao ataque de supremacistas brancos na Virgínia em 2017.

Los Angeles Times e Washington Post, hoje nas mãos de barões da tecnologia, romperam a tradição de declarar voto – Imagem: iStockphoto e Michael Fleischhacker

Para Gherman, Harris, ao contrário do opositor e apesar do apoio incondicional do governo do qual faz parte a Israel, opção que coloca em risco os votos na democrata dos árabes-americanos, revoltados com a chancela da Casa Branca à limpeza étnica em Gaza e à invasão do Líbano, teria a oportunidade e quiçá a vontade de promover um diálogo baseado no reconhecimento das complexidades do Oriente Médio, de modo a abrir caminho para um processo de paz mais duradouro. “Harris deve entender que o apoio completo a Israel não é mais viável. Sua eleição pode sinalizar uma mudança em direção a uma política mais equilibrada, que leve em consideração os direitos e aspirações dos palestinos, juntamente com as necessidades de segurança de Israel. A vitória de ­Harris é a única opção para um futuro menos atribulado na região nos próximos anos.”

Os riscos de uma desestabilização interna e de um novo teste à resistência das instituições democráticas dos Estados Unidos são outra fonte de preocupação internacional. Conforme detalha a reportagem de The Observer publicada a seguir, os aliados de Trump traçaram uma estratégia jurídica e midiática para levantar suspeitas de fraude nas eleições, caso o ex-presidente seja derrotado nas urnas. Os republicanos projetam um longo e complexo período de contagem de votos, afetado pelo acirramento da disputa nos sete estados pêndulos, aqueles que ora apoiam os democratas, ora os oponentes. Quanto mais demorada for a proclamação do novo presidente, maiores serão as chances de os boatos sobre manipulação das urnas ganharem tração e incentivarem os protestos das bases trumpistas. A invasão do Capitólio em janeiro de 2021, chamada de “dia do amor” pelo ex-presidente, é resultado da fake news de fraude no resultado. O que poderia acontecer desta vez?

Em meio a tantas incertezas, dois dos mais influentes jornais do país, W­ashington Post e Los Angeles Times, abriram mão de uma tradição marcante da mídia norte-americana. Pela primeira vez, os veículos não vão declarar apoio a um candidato – historicamente, o aval era dado ao representante do Partido Democrata. Patrick Soon-Shiong, dono do ­Times, atribuiu a decisão ao conselho editorial, mas foi desmentido por integrantes do ­board. Sua filha, Nika, resolveu então atribuir a falta de endosso a ­Harris à discordância com o genocídio em Gaza apoiado pela Casa Branca. A (não) escolha do Post, por sua vez, foi justificada pelo atual dono, o magnata Jeff Bezos, fundador da Amazon, como uma forma de evitar “uma percepção de parcialidade”. Não colou. Leitores passaram a cancelar as assinaturas em massa. Integrantes do conselho editorial dos dois veículos decidiram afastar-se dos cargos, enquanto outros pediram demissão. Segundo a National Public Radio, o Post, crítico severo de Trump no passado, perdeu mais de 250 mil assinantes até a terça-feira 29, cerca de 10% da base de 2,5 milhões. O Los Angeles, que tem cerca de 400 mil assinantes, ficou sem 7 mil assinaturas por “razões editoriais”.

Na segunda-feira 28, em entrevista ao ­site Politico, a ex-assessora de Trump Fiona Hill disse que a decisão dos jornais faz parte de um padrão preocupante. “Eles não são movidos por quem representam ou pelas empresas que representam, mas pelo grupo de pares em que estão, um grupo extraordinariamente pequeno. Suas interações são todas sobre eles descobrirem como exercer poder juntos. No caso do Washington Post, o editor disse que o jornal não faria mais um endosso político presidencial quase exatamente ao mesmo tempo que funcionários seniores da Blue Origin, outro grande negócio de Bezos que depende de contratos governamentais no campo espacial, se encontraram com Trump. É extraordinariamente preocupante, pois esse é o tipo de padrão que ninguém esperaria ver nos Estados Unidos.” Na terça-feira 29, em entrevista ao programa de rádio The Breakfast Club, foi a vez de Harris comentar a decisão dos jornais. A candidata democrata classificou como “decepcionante”. “São bilionários do clube de Donald Trump. É quem está no clube dele. É com quem ele anda, é com quem ele se importa.”

Grande parte dos magnatas das big techs está com Trump, assim como todos os aspirantes a autocratas ao redor do planeta. Resta saber a opção do eleitorado dos EUA. Para a maioria do globo, esta não é uma escolha difícil. •

Publicado na edição n° 1335 de CartaCapital, em 06 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cara ou coroa’

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