CartaCapital

Cara esquerda branca

Desde a Faculdade de Direito, aprendemos a lidar com a esquerda revolucionária que nunca usou um transporte público.

Fachada da Faculdade de Direito de Recife, uma das primeiras do país
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Hoje eu vou me atrever a escrever para pessoas brancas e vou começar contando uma história.

É mais uma noite agradável e quente em Recife. Eu estou no salão nobre da Faculdade de Direito – FDR, situada em frente ao Parque 13 de Maio, no centro da cidade. Muita simbologia envolvida nessa primeira parte da narrativa, principalmente se considerarmos para quem o prédio da FDR foi projetado e o nome do parque à sua frente, que faz referência à fictícia abolição. Mas voltando ao salão nobre, essa é a primeira vez que vejo esse suntuoso espaço repleto de gente preta. Confesso que fiquei impactada com a cena.

Assim, enquanto o Prof. Adilson Moreira falava sobre a hermenêutica da branquitude, eu lembrava da primeira vez que eu entrei ali para a aula magna de boas-vindas. No início dos anos 2000, eu ainda estava feito matuta olhando para o teto barroco, quando o presidente do diretório acadêmico começou a se apresentar e a nos dar boas-vindas. O discurso foi muito progressista, falou-se sobre direitos humanos, políticas públicas, ações nos presídios e luta por um ensino público de qualidade. O presidente do diretório se declarou de esquerda, afirmando sua preocupação com a justiça social. Tudo muito lindo de se ouvir.

Nesse dia, o diretor da Faculdade também estava presente, assim como alguns coordenadores e professores, que ressaltaram a importância da Casa de Tobias Barreto nas lutas progressistas. Em um momento se puseram a citar nomes de juristas, políticos, jornalistas e escritores que já tinham passado por ali. Eu fiquei orgulhosa, não vou mentir, que mulher da minha cor não mente. Mas algo ali não fazia muito sentido. E estava claro o que era.

E quando eu digo que estava claro é porque estava tudo muito claro mesmo. Todos os que falaram naquele dia eram homens brancos, boa parte deles com sobrenomes importantes e pompas aristocráticas. Uns achavam que eram deuses, outros tinham certeza de sê-lo, como bem disse o saudoso Dário Rocha. E eu? Bem, eu era apenas uma moça preta, latina-americana, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vinda do interior, como diria Belchior.

Naquele momento eu percebi que tinha que ser estratégica para sobreviver por ali.

E uma das minhas estratégias foi ficar bem longe daquele movimento estudantil de uma esquerda que nunca usou transporte público, e focar nos livros. Afinal, eu precisava ser 10 vezes melhor que eles e elas para ter alguma chance.

Mas voltando ao presente, estou eu mais uma vez no salão nobre, só que agora tem um intelectual preto falando para um auditório preto. E isso me deixa bem confusa. As duas imagens, a do ontem e a do agora, fundem-se em uma composição imagética sobreposta de retrato em preto e branco. As vozes e os discursos também se misturam em minha percepção ressoante do passado-presente.

Nessa confusão mental, a minha identidade de ontem se comunica com a de hoje questionando: “onde estão os brancos?” “Cadê a esquerda progressista?”. Fiz o teste do pescoço e identifiquei 5 pessoas brancas. Pensei: “será que ocupamos completamente a casa grande?”, “Será que o Haiti é aqui, como diria Gil, e temos na FDR uma microrrepresentação da primeira República Negra?”, “Ou será que fomos assaltados pela extrema direita?”. Nada disso. Então, o que está acontecendo? Por que a branquitude progressista da FDR não está prestigiando um renomado pesquisador negro?

Esses fatos ocorreram um pouco antes da necropolítica pandêmica. Foi, portanto, anterior ao momento em que o debate racial emergiu na esfera pública de uma forma nunca antes vista, segundo relata muitos dos nossos mais velhos, como o Dr. Hédio Silva. Talvez todo esse contexto de divulgação das narrativas e debates sobre relações raciais no Brasil tenha preparado a sua percepção para o que eu vou dizer agora: a esquerda brasileira é racista. Pronto, falei! E não adianta sacar “O Capital” contra mim, pois eu tenho um elemento teórico muito mais complexo para contrapor ao reducionismo marxista: o conceito de interseccionalidade, desenvolvido pelas intelectuais negras.

Cara esquerda branca, não fique chateada e continue a ler o que tenho a dizer. Faça o exercício filosófico de se questionar. Pergunte-se: “se tudo é uma questão de classe, onde estão as pretas e pretos que movimentam 1,7 trilhão de reais por ano no Brasil?”. “Onde está essa população negra que ascendeu economicamente, mas continua subrepresentada nos espaços de poder?”. “Por que aquela pessoa negra que tem a mesma formação que eu, ou muitas vezes um currículo muito melhor que o meu, não está nos espaços onde eu estou?”. Ou faça perguntas mais simples, do tipo: “quantas pessoas negras estão no meu círculo de intimidade?”, “quantos perfis de pessoas negras eu acompanho nas redes sociais?” e mais: “por que eu uso #antirracista sem primeiramente me reconhecer como racista?”.

Eu sei que incomoda, mas sem desconforto não há transformação possível. Os seus privilégios precisam te incomodar sim. Enquanto você não reconhecer que existe uma interseccionalidade entre classismo, racismo, machismo, capacitismo, etarismo e tantas outras formas de opressão, o seu discurso não passa de demagogia. E continuaremos a ter pessoas pretas falando para auditórios pretos, enquanto as brancas falam para todos e todas. Afinal, sem problematização, você continuará se percebendo enquanto sujeito universal, detentor da razão e qualquer ideia que não seja importada da Alemanha continuará a ser taxada de pauta identitária subcomplexa.

Mas nos deram esse espaço aqui na Carta Capital e, em nome da Abayomi Juristas Negras, eu tenho que dizer que, apesar dessa posição de suposta neutralidade, a intelectualidade branca, progressista, esquerdista e academicista do direito não divide a mesa com não-brancos, e segue feliz e satisfeita discutindo direitos fundamentais, antifascismo, sistema prisional, direito penal, violência contra mulher, LGBTIQ+fobia, constituição, sociedade, política, justiça e democracia sem abrir espaços para uma contranarrativa e reforçando os pactos narcisísticos de silenciamento racial.

Eu tenho a sensação de que existe uma espécie de esquizofrenia nesse eterno diálogo consigo mesmo. Como Caetano diz, “é que Narciso acha feio o que não é espelho”. Assim, segue a esquerda branca se perguntando: “espelho, espelho meu, existe alguém mais sábia do que eu?”. E essa não é uma realidade da Faculdade de Direito do Recife, pelo contrário. O brancocentrismo falocêntrico domina os espaços de poder e saber do país.

E aqui eu sou obrigada a falar sobre o feminismo esquerdista e progressista do Brasil, que coleciona algumas conquistas, como acontece atualmente no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil e no âmbito das candidaturas de mulheres aos cargos legislativos. Eu fico feliz pelo meu lado mulher, porém não posso deixar de denunciar que esse feminismo luta contra o patriarcado, mas reproduz o racismo. Esse é o feminismo progressista que escreve mulher no singular e exclui dos espaços de privilégios as mulheres negras.

Para não ficar apenas na teoria, cito o exemplo da composição do Conselho Federal da OAB, que não possui uma única advogada negra, dentre as 162 pessoas que o compõe. Agora essas mulheres feministas fazem campanha para ocuparem 50% dos cargos da OAB. O nome da campanha é paridade já, mas paridade de gênero sem equidade racial, minhas caras, é manutenção do privilégio branco. E algumas de vocês já perceberam isso e se tornaram aliadas na luta por “equidade já”. Infelizmente, essa visão plural da mulheridade ainda é minoritária.

Vou contar outro causo para ilustrar o que acontece no sistema de justiça

Abayomi Juristas Negras

Sabemos que 2/3 da população carcerária do país é de pessoas negras, temos conhecimento de que a taxa de feminicídio reduziu em 9,8% para as mulheres brancas enquanto aumentou em 54,2% para mulheres negras (isso mesmo, mais de 50%). Posso citar dezenas de outros dados que mostram a brutalidade do racismo estrutural, mas vou falar apenas de mais um: um jovem branco precisa portar 8 vezes mais drogas que um jovem negro para ser enquadrado como traficante. O nosso sistema criminal é a expressão mais violenta da necropolítica brasileira.

Bem, mesmo diante de todos esses dados, a Escola da OAB Pernambuco lançou um evento feminista, intitulado “I Seminário de Mulheres Criminalistas da OAB/PE”. E adivinhem… Todas as palestrantes são brancas. Ao que parece, existe uma “crença” de que não há advogadas negras com capacidade intelectual para discutir teses criminalistas com profundidade ou que a questão racial não tem nenhuma relevância para o debate nas ciências criminais.

Em poucos minutos, a arte do evento de divulgação ganhou o Brasil, obrigando a organização a se retratar e a reconhecer o “equívoco”. Essa não foi a primeira vez que isso aconteceu e, infelizmente, não será a última. Afinal, a ausência de juristas negras na composição original do evento não é racismo, não é mesmo? O problema é que as feministas brancas não conhecem as juristas negras especialistas, mestras, doutoras e pós-doutoras em direito criminal e em outras tantas áreas do saber. Elas não sabem que existimos, mas isso não é racismo, ok?

Na verdade, elas nem notaram a nossa ausência porque elas  “não se importam com cor” e escolhem as palestrantes pelo “mérito”. E quando elas são “alertadas” de que não existem mulheres negras no evento, elas pedem desculpas e dizem que temos que providenciar um catálogo, tipo de casacos de pele, para elas escolherem quando forem obrigadas a serem inclusivas. No final das contas, a culpa é sempre das pretas, pois as feministas usam #antirracista no instagram.

Caras colegas brancas, melhorem. Se querem falar de feminismo e de sororidade, entendam que somos diversas. Se querem dizer que ninguém deve soltar a mão de ninguém, vejam em quem vocês estão se agarrando e o quanto esse círculo de mulheres brancas nos impede de ocupar espaços nessa roda que deveria ser uma grande ciranda, na expressão mais vívida de Dra. Lia de Itamaracá, que recebeu a medalha de heroína de tejucupapo pela OAB/PE. Quanta incoerência, colegas. Lutar contra uma opressão e reproduzir outra.

E não adianta chorar com a dureza das minhas palavras e dizer que se sentem injustiçadas. Não me venham dizer que sempre convidam a única negra que conhecem para essa roda monocromática de “empoderamento”, pois eu não aceito essa posição de negra única e tenho o dever de afirmar: somos muitas, somos multipotentes, somos plurais, somos capazes de debater sobre qualquer tema e em qualquer grau de complexidade. Nós não somos subtema de nada. Questão racial não é recorte, é centro de discussão de uma sociedade racista. Nós não vamos mais aceitar migalhas e posições subalternas em silêncio.

A realidade é que entre esquerda e direita, como disse Sueli Carneiro há mais de vinte anos, nós continuamos mulheres pretas. E mais, entre feministas e antirracistas, nós continuamos mulheres pretas. E é daqui, dessa encruzilhada entre o racismo patriarcal e o capitalismo global que nós bradamos por justiça.

Mojubá Laroiê.

Eparrey Oyá.

Kaô Kabecilê.

Texto de Chiara Ramos, melhorado por Madalena Rodrigues.

Co-Diretoras da Abayomi Juristas Negras

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