CartaCapital
Cara e coroa
Por que as declarações de Lula sobre o dólar provocam tanta celeuma?


Interpretadas pela mídia local como fantasia de quem não sabe o lugar do Brasil no mundo, que deveria ser, segundo os jornais, de alinhamento aos interesses dos Estados Unidos, a visita de Lula à China e as declarações proferidas nesse país e nos Emirados Árabes se revestem, contudo, de um implacável pragmatismo, por mais inusuais que possam parecer algumas afirmações. É o que revelam tanto os fatos quanto as análises de alguns economistas. Com recepção de gala pouco vista em visitas de líderes ocidentais à segunda maior potência mundial, Lula trouxe 15 acordos comerciais, econômicos e tecnológicos, inclusive para exploração espacial, um aporte total de investimentos estimado em 50 bilhões de dólares e o compromisso de aprofundamento do uso das moedas nacionais nas trocas comerciais.
A representação numérica do pragmatismo do governo brasileiro está na diferença entre os 50 milhões de dólares prometidos pelo presidente dos EUA Joe Biden para o Fundo da Amazônia e os 50 bilhões em acordos firmados entre os governos Lula e Xi Jinping. Cabe ressaltar que Lula voltou de Washington, no começo do ano, sem nenhum acordo econômico ou comercial assinado, provavelmente fato inédito na relação bilateral. “A atuação recente de Lula não é à toa. Ele fez a primeira viagem internacional fora da América do Sul para os EUA e foi recebido, do ponto de vista diplomático, de maneira muito fria. A transferência de 50 milhões de dólares ao Fundo Amazônia prometida foi praticamente um carimbo no passaporte de Lula para a China”, afirma o economista André Roncaglia, professor da Unifesp.
O saldo econômico nulo do encontro Lula-Biden contrasta com a situação do pós-Guerra, quando a administração do presidente Franklin Roosevelt considerava a promoção do progresso no Brasil e de outros países aliados essencial à defesa dos interesses estadunidenses, no contexto político-econômico do reerguimento da economia mundial. Esse apoio atingiu seu auge quando Getúlio Vargas esboçou uma aproximação com a Alemanha, apenas como estratégia para acelerar o auxílio financeiro norte-americano ao desenvolvimento brasileiro. O plano foi bem-sucedido e os EUA concederam financiamentos expressivos que permitiram viabilizar a construção da usina siderúrgica de Volta Redonda, a primeira do País.
O fim da moeda dos EUA como referência universal de troca e reserva ainda não está no horizonte
Muitos ainda relutam, entretanto, em aceitar uma participação incisiva, na cena mundial, de um país quase sempre visto como quintal dos Estados Unidos. “Lula articula um pacote de acordos com a China sem precedentes. O Brasil pode ser catapultado para o epicentro do tabuleiro geopolítico. E não poderá jogar a Copa do Mundo de chinelo de dedo”, disparou o cientista político Diego Pautasso, autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria, em uma rede social. “A retórica incisiva de Lula sinaliza um caminhar na direção do polo chinês com uma autonomia muito forte do Brasil”, sublinha Roncaglia. Haverá um custo, diz, mas é o que a geopolítica oferece hoje ao País, que tem de se posicionar de maneira autônoma, sem alinhamento automático, mesmo que haja retaliação.
O presidente do Brasil, é importante lembrar, visitou a sede da Huawei, empresa líder mundial em equipamentos de telecomunicações e tecnologia 5G, considerada a inimiga número 1 dos Estados Unidos na guerra tecnológica com a China. Cabe sublinhar também que os chineses avançam em parcerias com outras economias sul-americanas, como mostra, entre vários exemplos, a formação de uma joint venture para a exploração de usina nuclear na Argentina.
Lula afirmou que pretende elevar o patamar da parceria bilateral e equilibrar a geopolítica mundial. “Ninguém vai proibir que o Brasil aprimore a sua relação com a China”, ressaltou. Suas declarações consideradas mais polêmicas foram a contestação do dólar como moeda hegemônica e a responsabilização da Rússia e da Ucrânia pela guerra entre os dois países, estimulada, segundo o presidente brasileiro, pelos Estados Unidos e pela Europa.
“Se o Brasil, a China ou os BRICS querem substituir o dólar, boa sorte com isso”, ironizou Thomas Shannon, ex-subsecretário do Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado norte-americano. Tanto os EUA quanto a União Europeia criticaram as declarações de Lula sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia. Há crescente concordância, contudo, quanto à responsabilidade dos Estados Unidos na perda crescente da confiabilidade da sua moeda, com sequestros de depósitos em dólar e em ouro da Rússia e da Venezuela no exterior e o cerco comercial e financeiro sem precedentes à Rússia, com grande prejuízo ao mundo por fazer disparar os preços dos alimentos e dos combustíveis. “Quando os Estados Unidos e seus parceiros do G-7 impuseram sanções ao Banco Central da Rússia e proibiram as instituições financeiras ocidentais de fazer negócios com contrapartes russas, muitos alertaram para mudanças de longo alcance na ordem monetária e financeira global. Outros países viram essas sanções como mais um passo no ‘armamento’ das finanças do Ocidente. Temendo que também eles possam ser alvo de sanções um dia, governos e Bancos Centrais procuraram reduzir suas dependências do dólar, das instituições financeiras dos EUA e da Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (SWIFT), dominada pelos EUA”, sublinha o economista Barry Eichengreen, professor de Economia da Universidade da Califórnia, em artigo no portal Project Syndicate.
A China, diz Eichengreen, seria o principal beneficiário desse cenário. A Rússia aceita o renminbi no pagamento total de 14% das suas exportações. Seu fundo soberano detém o equivalente a 45 bilhões de dólares em títulos e depósitos em renminbi, e as empresas russas emitiram 7 bilhões de dólares em títulos denominados em renminbi no ano passado. Quando Xi Jinping visitou a Arábia Saudita, no fim do ano passado, houve conversas sobre os sauditas receberem o pagamento das suas exportações de petróleo na moeda chinesa. “A China concluiu recentemente acordos de compensação com o Paquistão, a Argentina e o Brasil. No mês passado, o Banco Central do Iraque anunciou um plano para permitir a liquidação direta de renminbi para o comércio com a China. No entanto, esse tipo de mudança mais ampla ainda não é visível nos dados.” Segundo o Fundo Monetário Internacional, a parte do renminbi nas reservas cambiais mundiais ainda está abaixo de 3% do total global reportado. Além disso, a moeda é responsável por menos de 2% do valor de todas as ordens relativas a pagamentos interbancários transfronteiriços enviados pelo sistema SWIFT.
O renminbi chinês ocupa uma ínfima porção das reservas internacionais dos países. O extrativismo brasileiro está atrelado ao dólar – Imagem: Tomaz Silva/ABR e iStockphoto
“Acho que tem uma certa confusão na declaração de Lula sobre o que se vai fazer, se é criar uma moeda comum, ou apenas gerar um sistema de compensação, como se havia pensado inicialmente quando o ministro das Finanças da Argentina colocou essa discussão na mesa, na América do Sul. A conversa sempre vem com uma ambiguidade, que atrapalha, gera ruído. Entretanto, Lula deixou muito claro que não necessariamente precisamos usar o dólar para operações comerciais entre parceiros próximos, principalmente no BRICS”, sublinha Roncaglia.
A essência do problema, acrescenta o economista, é ver se existe uma maneira de não ter de ir até o dólar para fazer operações. “A possibilidade existe, mas não é fácil fazer, pois há muita heterogeneidade quanto à receptividade em diferentes setores, exatamente pela dominância do dólar em alguns deles, como o agronegócio e o extrativo-mineral. Mas é possível, certamente, avançar em uma agenda se forem criados benefícios na direção de usar câmaras de compensação entre o Brasil e a China.”
As discussões sobre uma moeda de reserva politicamente mais neutra correm há décadas
A mudança de dólares para uma base de liquidação renminbi-real no comércio sino-brasileiro, sublinha o economista Peter C. Earle, do American Institute for Economic Research, é apenas o episódio mais recente de uma tendência crescente. As discussões sobre uma moeda de reserva politicamente mais neutra duram décadas. A profunda perturbação econômica experimentada pelo Irã e, mais recentemente, pela Rússia, depois de ser expulsa de sistemas comerciais baseados em dólares, levou muitas nações a considerar planos de contingência iminentes. A Índia e a Malásia começaram recentemente a usar a rupia indiana para fechar certos negócios, e tem havido alertas perenes sobre a Arábia Saudita e outros exportadores de energia se afastando do dólar. A China também fechou recentemente um comércio de teste de gás natural com a França liquidado em renminbi, ressalta o economista.
O fim do dólar como moeda universal de troca e reserva não está, entretanto, no horizonte, assim como a eventual supremacia do renminbi ou outra moeda, conclui-se desta passagem do livro Exorbitant Privilege, de Eichengreen. “A falácia fundamental por trás da noção de que o dólar está envolvido em uma corrida mortal com seus rivais é a crença de que só há espaço para uma moeda internacional. A história sugere o contrário. Além da peculiar segunda metade do século XX, sempre houve mais de uma moeda internacional”, ressalta o economista. Não há razão, diz, para que, daqui a alguns anos, os países da fronteira com a China não possam usar o renminbi em suas transações internacionais, enquanto os países vizinhos da Europa usam o euro e os países que fazem negócios com os Estados Unidos usam o dólar. Não há razão para que apenas um país tenha mercados financeiros profundos e amplos o suficiente para tornar atraente o uso internacional de sua moeda. O mundo para o qual precisamos nos preparar é, portanto, aquele em que coexistem várias moedas internacionais, conclui o professor da Universidade da Califórnia. •
Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cara e coroa’
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