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Bolsonaristas tentam desqualificar programa de Equidade de Gênero no SUS; conheça a iniciativa

O programa irá promover os direitos da mulher que trabalha na saúde e buscar protegê-la da violência de gênero

SUS. Foto: Agência Brasil
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Desde que o Ministério da Saúde anunciou a criação do Programa Nacional de Equidade de Gênero, Raça e Valorização das Trabalhadoras no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), no dia 7 de março, figuras do bolsonarismo tentam desqualificar o programa ao associá-lo ao que chamam de “ideologia de gênero”.

Nesta terça-feira (14), a deputada federal Coronel Fernanda (PL-MT) chegou a protocolar um requerimento de convocação da ministra da Saúde, Nísia Trindade, a fim de prestar esclarecimentos acerca do programa.

A congressista afirma que o “Ministério da Saúde, com o objetivo de difundir ideias ligadas à ‘teoria de gênero’, usurpou competência do Poder Legislativo, criando novas obrigações aos trabalhadores da saúde sem que haja qualquer referência legislativa para tanto”.

“A ‘teoria de gênero’ consiste em um produto ideológico, ou seja, um discurso que substitui a realidade por uma motivação política, de modo que não é razoável que dela se valham aqueles que buscam promover, genuinamente, os direitos dos trabalhadores”, defende a deputada bolsonarista.

Na mesma linha, a deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ) publicou um vídeo em suas redes sociais no qual acusa o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de institucionalizar a suposta “ideologia de gênero” no país. “Trata-se de usar o ‘gênero’ como instrumento político, de disseminar uma ideologia atentatória à natureza humana nas instituições públicas”, afirma a congressista.

Por sua vez, o deputado federal (PL-SP) e ex-secretário Especial de Cultura do Governo Bolsonaro, Mario Frias, compartilhou o vídeo de Tonietto e disse: “Não mediremos esforços para barrar esse absurdo! Não permitiremos de forma alguma que o dinheiro do pagador de impostos seja utilizado para propagar essa aberração!”.

Ao contrário do que os congressistas afirmam, a portaria não tem como objetivo institucionalizar a “ideologia de gênero”. Segundo Ana Barbosa, professora no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e doutoranda em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o programa tem o intuito de promover os direitos da mulher que trabalha na saúde e buscar protegê-la da violência de gênero.

Ideologia de gênero?

A literatura explica que gênero pode ser compreendido como uma gama de características, funções e expectativas que acompanham o sexo atribuído a uma pessoa, de acordo com o que espera a sociedade.

Heloisa Buarque de Almeida, professora de Antropologia e Gênero da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença (Numas), explica que “o gênero é, na verdade, uma concepção teórica que problematiza essa ideia e diz que existem homens e mulheres vivendo em condições muito diferentes. Nem toda mulher é mãe ou será mãe. O gênero desconstrói uma série de obviedades no imaginário mais conservador da família”.

“Eles [extrema-direita, à qual estão ligados congressistas bolsonaristas] associam muito o gênero à família, o que pode ser observado pela defesa da família que vem sempre junto com o ataque à teoria de gênero. Por isso, eles dizem que o gênero é uma ideologia. Na verdade, eles são ideólogos de gênero, mas não sabem disso porque imaginam as mulheres e os homens de uma maneira limitada.”

Nesse sentido, Ana Barbosa destaca que é “importante considerar que o gênero organiza a nossa sociedade, estruturando as interações sociais, as identidades e a forma como as pessoas se veem e percebem a sua saúde. O gênero é responsável também pela distribuição de poder e de recursos, onde esses poderes e recursos são socialmente construídos, distribuídos e hegemonicamente sustentados pelo que biologicamente se compreende ser homem ou ser mulher”, afirma.

“O que eu vejo de mais importante nesse programa é a adoção da interseccionalidade para compreender esse papel da mulher enquanto trabalhadora da saúde. Sendo ela uma mulher negra, ela vai ser atravessada por diferentes opressões como racismo, sexismo e, eventualmente, o classismo, e estes irão operar como marcadores sociais da diferença. A interseccionalidade vai considerar essas múltiplas dimensões que compõem a existência dessa mulher e a deixam vulnerável a uma maior ou menor desigualdade.”

O estudo “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil”, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, aponta as diferenças entre os rendimentos mensais de pessoas brancas e negras – pretas e pardas – ocupadas.

Enquanto as mulheres recebem 78,7% dos valores dos rendimentos dos homens, as pessoas negras recebem apenas 57,5% dos rendimentos das pessoas brancas, com destaque para a vantagem dos homens brancos sobre os demais grupos populacionais. As mulheres pretas ou pardas recebem menos da metade do que os homens brancos: 44,4%.

As mulheres brancas possuem rendimentos superiores não só aos das mulheres pretas ou pardas, como também aos dos homens dessa cor ou raça. Os homens pretos ou pardos, por sua vez, possuem rendimentos superiores somente aos das mulheres dessa mesma cor ou raça.

“Na escala social, a mulher negra está em maior desvantagem em relação aos demais grupos. Isto influencia nas relações sociais entre trabalhadoras e trabalhadores e entre estas e estes com as usuárias e usuários. Na divisão sexual do trabalho, o trabalho em saúde pode vir a ser um trabalho essencialmente feminino. Assim, é fundamental um programa que reconheça estas disparidades, a fim de minimizá-las e tornar o espaço de trabalho um lugar mais democrático, mais equânime e mais saudável”, afirma Ana Barbosa.

“Eu imagino com o programa um SUS onde haja as condições necessárias ao exercício desta equidade, onde se reconheça o machismo e o racismo como estruturais, modificando estas estruturas que operam na divisão do trabalho na saúde tanto do ponto de vista da divisão sexual, quanto da divisão racial. Eu imagino um SUS onde discriminações históricas sejam efetivamente combatidas e um SUS que opere pela laicidade do Estado.”

De acordo com a portaria GM/MS nº 230, de 7 de março de 2023, são objetivos do programa: “promover a equidade de gênero e raça no Sistema Único de Saúde buscando modificar as estruturas machista e racista que operam na divisão do trabalho na saúde; enfrentar as diversas formas de violências relacionadas ao trabalho na saúde”.

Também fazem parte: “acolher as trabalhadoras da saúde no processo de maternagem; promover o acolhimento das mulheres considerando seu ciclo de vida no âmbito do trabalho na saúde; garantir ações de promoção e de reabilitação da saúde mental, considerando as especificidades de gênero e raça; e promover a formação e educação permanente na saúde, considerando as interseccionalidades no trabalho na saúde”.

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