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As reservas de terras-raras dão uma vantagem competitiva ao Brasil. Se o País souber usá-las

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Uma nova reserva descoberta em Araxá, Minas Gerais, amplia a oferta de minerais críticos. No primeiro encontro entre Vieira e Rubio nos EUA, o assunto não estava entre as prioridades – Imagem: Redes Sociais/CBMM, Daniel Torok/Casa Branca Oficial e José Cruz/Agência Brasil
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O recrudescimento da guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, reavivada após Pequim restringir as exportações das chamadas terras-raras, hoje indispensáveis ao desenvolvimento tecnológico global, colocou o assunto de volta na agenda política e diplomática do Brasil. Na quinta-feira 15, o chanceler Mauro Vieira teve a primeira reunião ­tête-à-tête, em ­Washington, com seu homólogo norte-americano, o secretário de Estado, Marco Rubio. O encontro é mais um movimento de aproximação entre os dois países após o início do “bromance” entre o presidente Lula e Donald Trump nos bastidores da Assembleia-Geral das Nações Unidas. Os itens da pauta não foram totalmente revelados, mas tanto a mídia brasileira quanto a dos EUA especulam que a criação de uma moeda dos BRICS, rechaçada pela Casa Branca, e a oferta de minerais críticos estariam entre os assuntos tratados.

As reservas brasileiras de terras-raras, um conjunto de 17 elementos químicos, entre outros minerais críticos, estão subestimadas. Ainda assim, pelo que se conhece hoje, o País ocupa a segunda posição mundial e tornou-se central na corrida pela exploração, dado o virtual monopólio exercido pela China. O governo iniciou, faz tempo, uma conversa com os chineses acerca de investimentos, mas nunca fechou as portas a outras parcerias. O dilema continua o mesmo da nossa história econômica: desta vez, vamos atrelar a exploração a um projeto de desenvolvimento nacional ou manteremos a sina de meros exportadores de matéria-prima, destinados a colher as migalhas de um mercado bilionário e que vai determinar os vencedores da corrida pela supremacia no século XXI?

Lula na inauguração da fábrica da BYD, montadora de carros elétricos. Xi Jinping limitou o comércio de minerais críticos extraídos no país e, por isso, Trump retomou a guerra tarifária com a China – Imagem: Saul Loeb/AFP e Ricardo Stuckert/PR

A disputa entre Washington e Pequim ganhou novos contornos após Trump anunciar a adoção de uma tarifa adicional de 100% sobre todos os produtos chineses a partir de 1º de novembro, além da proibição da exportação de “qualquer software crítico” ao país asiático. O republicano não gostou das novas restrições às exportações de terras-raras impostas em 9 de outubro pelo governo chinês, continuidade de um movimento iniciado em abril para limitar o comércio dos minerais entre terceiros sem autorização oficial. Líder mundial da produção de terras-raras, a China responde atualmente por 70% do processamento dos minerais e fabrica 90% dos ímãs usados em diferentes setores, da indústria bélica aos chips de computadores, passando por celulares, automóveis e equipamentos hospitalares de alta complexidade. Segundo a norma divulgada pelo Ministério do Comércio chinês, qualquer aplicação em outros países de tecnologia relacionada às terras-raras exportadas precisa ser comunicada a Pequim, sob o risco de interrupção do fornecimento. A justificativa é a segurança nacional, mas na prática a regra cria o que o governo dos EUA qualificou como um entrave à comercialização multilateral de produtos essenciais. “O presidente Xi quer exercer um controle hostil das exportações de terras-raras”, declarou Trump. Depois de ameaçar cancelar o encontro com o presidente da China na Coreia do Sul, o republicano, bem a seu feitio, voltou atrás. “Eu e o presidente Xi iremos conversar. A tarifa adicional não precisa acontecer.”

Abre-se uma janela de oportunidade ao Brasil? Fonte diplomática ouvida por ­CartaCapital afirma que a discussão sobre minerais estratégicos ou terras-raras, ao menos por enquanto, não foi oficialmente incluída nos pontos a serem negociados com os Estados Unidos. Nada garante, porém, que o tema não venha à tona. Quando falou pela primeira vez, ainda em Nova­ York, a respeito do encontro (nada) fortuito com Trump nos bastidores da assembleia da ONU, Lula garantiu que não haveria, da parte do Palácio do Planalto, nenhum “assunto proibido”. “Trataremos de tudo”, afirmou o brasileiro. “Os diplomatas norte-americanos já deixaram claro que a questão dos minerais, cedo ou tarde, entrará como um ponto sensível nessa pauta”, insiste a fonte. Embora ainda não tenha sido verbalizado por Trump ou Rubio, o interesse de Washington pelas terras-raras foi manifestado em julho pelo encarregado de negócios da Embaixada dos EUA no Brasil, Gabriel Escobar, durante reunião com empresários. Desde então, outras fontes reforçaram a cobiça. “A tensão na política comercial do governo Trump com o Brasil pode ser superada com foco em áreas de interesse mútuo, e certamente as terras-raras se encaixam nessa categoria”, afirmam, em artigo conjunto publicado recentemente em jornais brasileiros, os ex-embaixadores James Story e Ricardo Zuñiga. O “momento de incerteza” entre os países, escreveram, é favorável a “uma parceria pragmática” entre ­Lula e Trump que freie a liderança chinesa no setor. “A China domina a cadeia de abastecimento de elementos que todos os países precisam para alimentar o século XXI.”

Os investimentos na exploração de minerais críticos somarão 18,45 bilhões de reais até 2029, calcula o Ibram

Na disputa entre chineses e norte-americanos, o Brasil não precisa escolher um lado, mas defender alguns princípios, afirma Clauber Leite, coordenador do Instituto E+, think tank brasileiro que atua para pautar discussões sobre transição energética e transformação verde da indústria. “O País demanda diversificação tecnológica, transferência efetiva de know-how e estabilidade de regras. A estratégia deve ser de multialinhamento ativo, firmando joint-ventures com cláusulas de condomínio intelectual, adotando padrões de rastreabilidade compatíveis com múltiplos mercados e usando nossa energia renovável como trunfo”, destaca. Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, Gilberto Maringoni, vai na mesma linha. “O Brasil tem condições de dominar as cadeias produtivas do setor mineral a partir do conhecimento acumulado em quase um século de atividade industrial. Possuímos centros de pesquisa e universidades públicas capazes de gerar e intercambiar tecnologia para nos colocarmos de maneira soberana no mercado global. Um país com as dimensões do Brasil não tem de escolher lado, mas decidir como se inserir para não se tornar dependente de um único mercado.”

Maurício Ângelo, fundador do Observatório da Mineração, alerta que qualquer estratégia nacional levará tempo para render frutos. “As cadeias de minerais críticos não mudarão da noite para o dia. A China não chegou no ponto em que está hoje por acaso, e não foi rápido. Se o desenvolvimento de uma política de produção for a escolha do Brasil, essa política precisará ser mantida ao longo de décadas”, sugere. É preciso ainda estar atento aos eventuais impactos socioambientais, ressalta. “Essa cadeia vai ser desenvolvida em quais áreas? Vai respeitar a exclusão de Terras Indígenas, territórios quilombolas e assentamentos rurais, ou não”?

A ausência de uma política nacional para o setor é vista pelo professor Ronaldo Carmona, da Escola Superior de Guerra, como a maior dificuldade para o País inserir-se de forma soberana na disputa pelo mercado global de minerais estratégicos. “Um fato positivo foi o anúncio da criação de um conselho sobre minerais críticos diretamente ligado à Presidência da República. Dados os inúmeros e complexos desafios envolvidos no estabelecimento de uma política nacional que abranja um conjunto de questões, essa necessidade é premente.” Carmona aponta os problemas relacionados à baixa prospecção do território brasileiro, que tem apenas 27% do subsolo mapeado. “Precisamos, nesse contexto de ­disputa mundial, proteger nossos ativos estratégicos e impor limites e condicionantes ao acesso às reservas nacionais por parte de empresas estrangeiras, além de estruturar uma política de triagem de investimentos estrangeiros na área, especialmente aqueles voltados a aquisições predatórias de companhias brasileiras”, ensina.

Pelos cálculos do Instituto Brasileiro de Mineração, os projetos relacionados ao setor no Brasil deverão receber aportes de 68,4 bilhões de dólares até 2029. A parcela prevista para investimentos na produção de minerais críticos e estratégicos nesse período é de 18,45 bilhões de dólares. Segundo o presidente da entidade, Raul Jungmann, vários países, além de blocos econômicos, têm buscado informações sobre o setor mineral brasileiro nos últimos meses. “Além de China e dos Estados Unidos, há interesse da União Europeia, Arábia Saudita, Inglaterra, Canadá e Austrália. Vários contatos estão sendo realizados e há interesse pelos minerais estratégicos para várias finalidades, como a transição energética e a descarbonização.” Esses minerais integram a matéria-prima de baterias de lítio para veículos elétricos, painéis solares e turbinas eólicas, entre outros. Em 2024, de acordo com o Ibram, o setor exportou 3,64 bilhões de dólares, crescimento de 5,2% na comparação com o ano anterior. O resultado foi obtido graças à exploração iniciada no ano passado pela mineradora canadense Aclara Resources, que sob o nome Serra Verde explora terras-raras no município goiano de Minaçu e exporta toda a produção para a China. O plano da multinacional, que registrou um salto de 700% na produção no primeiro semestre de 2025, é extrair anualmente 5 mil toneladas de quatro tipos de argilas magnéticas essenciais para a fabricação de ímãs industriais: disprósio, itérbio, neodímio e praseodímio.

A expectativa de crescimento do segmento em um futuro breve aumentou com a provável entrada em cena de empresas nacionais e estrangeiras interessadas em explorar as jazidas descobertas em Minas Gerais (Araxá), Goiás, Amazonas e Rondônia. Em agosto, a Agência Nacional de Mineração e a Universidade Federal de Roraima anunciaram a descoberta da maior reserva de terras-raras do planeta, em uma área de 100 mil hectares no município de Caracaraí, que já desperta o interesse de inúmeros investidores. Outra grande jazida, no município mineiro de Poços de Caldas, será explorada pela empresa australiana Meteoric, fornecedora do Departamento de Defesa norte-americano.

As terras-raras são essenciais para vários setores, da indústria de defesa aos equipamentos hospitalares

Com um enorme potencial nacional nem sequer completamente mensurado e na corrida contra o relógio para inserir-se de forma competitiva na exploração, o governo brasileiro conta com diversas iniciativas em fase de estudos. Uma delas é a Política Nacional de Minerais Críticos e Estratégicos, em processo final de elaboração no Ministério de Minas e Energia, baseada em três eixos: o mapeamento geo­lógico completo das jazidas nacionais, a ampliação da produção e a criação de uma cadeia tecnológica de transformação. O governo também iniciou discussões com o Banco Interamericano de Desenvolvimento para o financiamento de projetos sustentáveis no setor de minerais estratégicos. “Temos uma das matrizes energéticas mais limpas entre as grandes economias mundiais, além de reservas consideráveis de minerais essenciais à transição energética global”, declarou recentemente Gustavo Masili, coordenador de Minerais Estratégicos da pasta.

Em nota, o ministério afirma que “a Política Nacional de Minerais Críticos e Estratégicos (PNMCE) encontra-se em fase de finalização e possui previsão de publicação ainda neste ano. A formulação da política vem sendo conduzida em articulação interministerial e com o Congresso Nacional, além de ouvir entidades do setor e a sociedade civil. A PNMCE tem por objetivo ampliar o conhecimento geo­lógico, a pesquisa mineral e a produção de minerais críticos e estratégicos, além de estimular o desenvolvimento tecnológico e a transformação mineral, com foco na agregação de valor em território nacional”. Sobre a parceria com o BID, acrescenta: “O processo decorre de uma cooperação institucional, o instrumento em questão possui caráter estritamente técnico e consultivo, e visa disponibilizar estudos e diagnósticos que subsidiem o processo decisório nacional. O procedimento de seleção internacional de consultorias obedece às melhores práticas de governança e transparência, permitindo que o Brasil se beneficie de análises técnicas de excelência, sem qualquer renúncia à sua autonomia decisória”.

Silveira coordena no Ministério de Minas e Energia o plano nacional. Jardim é relator na Câmara do projeto de regulação do setor – Imagem: Wenderson Araújo/Sistema CNA/Senar e Tauan Alencar/MME

Outra iniciativa em debate é o Projeto de Lei 2.780, que cria a política nacional para minerais críticos e teve aprovado pela Câmara o regime de urgência, o que reduz o tempo de tramitação. Relator da proposta, o deputado federal Arnaldo Jardim, do Cidadania, apresentou, na terça-feira 14, as principais medidas, entre elas a adoção de metas e indicadores objetivos para o setor e a criação de instrumentos de fomento à produção e transformação dos minerais, entre outros. O projeto prevê ainda a criação de novos meios de governança, como o Comitê de Minerais Críticos e Estratégicos, o Fundo Garantidor da Atividade Mineral e o Programa Federal de Minerais Essenciais à Transição Energética, e de uma estatal para administrar o processo de exploração. “Vamos colocar o Brasil na vanguarda da nova economia verde, garantindo segurança na oferta de minerais críticos e impulsionando o desenvolvimento sustentável do País”, anuncia Jardim.

Vice-presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara, o deputado Nilto Tatto, do PT, afirma ser fundamental a adoção de uma política estratégica, mas afirma “que não é o caso de levar agora” o PL ao plenário. “É necessária uma discussão aprofundada, não devemos aprovar no afogadilho. Vamos aguardar o resultado do grupo de trabalho criado pelo Executivo e trazer para a discussão a sociedade, a academia e os movimentos sociais”, sugere. O parlamentar recomenda­ ainda a realização de audiências públicas para promover um amplo debate a partir da perspectiva da soberania. Para Tatto, “o Brasil tem de superar a relação histórica com a exploração mineral, que sempre teve muito impacto social e ambiental sem agregar valor. Esse debate deve dialogar com o programa Nova Indústria Brasil desenvolvido pelo governo”. O País, ressalta o deputado, precisa agregar valor aos seus minerais: “É fundamental buscar parcerias internacionais. Não há preconceito em relação a investimentos que possam vir, desde que garantam uma nova visão aqui em relação à política de extração mineral, em especial daqueles que são fundamentais para a transição energética e o enfrentamento da crise climática. Não devemos ter problema nenhum se esse investimento vier dos Estados Unidos, da China ou da Europa, desde que garanta que possamos manter uma estratégia de desenvolvimento, pesquisa e agregação de valor aqui no Brasil”. O petista é igualmente favorável à criação de uma estatal para o setor. “É preciso uma empresa que cumpra o papel que a Petrobras cumpriu historicamente, um lugar onde se pense uma política de Estado que perpasse governos e que possa investir em pesquisa, ciência e tecnologia, acoplada a uma estratégia de industrialização”, diz.

As terras-raras compõem as matérias-primas para a fabricação de chips – Imagem: iStockphoto

O PL, avalia Maurício Ângelo, não defende a soberania nacional e aprofunda o modelo de concessão de incentivos fiscais a mineradoras de capital privado. “Isso é uma tônica mundial, não é exclusividade do Brasil. Só que, no nosso caso, não há contrapartidas tecnológicas ou econômicas. Ao contrário, o que vem acontecendo é uma entrega, inclusive do mapeamento geológico em parceria com outros países. O mercado brasileiro tem sido historicamente dominado por multinacionais. Isso não mudou e vai se aprofundar com a proposta na mesa.” Por sua vez, Clauber Leite acredita que tanto o plano do ministério quanto o projeto em debate no Congresso “caminham na direção correta”, mas reclama da ausência de três itens para garantir uma inserção nacional soberana: metas vinculantes de agregação de valor atreladas a desempenho tecnológico e socioambiental, coerência regulatória com licenciamento ágil sem afrouxar salvaguardas e governança interministerial com orçamento e métricas de conteúdo tecnológico, intensidade de carbono e participação local.

A exemplo do pré-sal, as reservas de terras-raras são um novo bilhete premiado nas mãos de um país desde sempre bafejado pelas dádivas da natureza. Em outras oportunidades, o Brasil preferiu, no entanto, rasgar o bilhete ou doá-lo a terceiros a descontá-lo na boca do caixa. E agora? “O fato de possuirmos reservas expressivas de terras-raras em meio ao aumento de sua demanda e do esgarçamento da disputa geopolítica global não nos garante muita coisa se não dominarmos a etapa de processamento industrial”, explica Maringoni. “Se não houver controle estatal, com indução, planejamento e financiamento de todas as etapas da cadeia produtiva, que inclui subsolo, reservas, extração, preservação ambiental, refino, transporte e comercialização, repetiremos o que acontece nos setores de mineração e petróleo. Ou seja, vamos reforçar o caráter primário-exportador e periférico de nossa economia, com mínimo efeito multiplicador interno.” •

Publicado na edição n° 1384 de CartaCapital, em 22 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bilhete premiado’

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