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As maiores manchas na imagem externa do Brasil

A principal caraterística da política externa brasileira é que seus problemas são, no essencial, de política interna

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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As coisas evoluem, um problema é substituído por outro, mas se hoje tivesse de escolher eu diria que o maior problema na imagem internacional do Brasil é a luta contra a pandemia. Na verdade, vimos um pouco de tudo no mundo e não podemos honestamente dizer que o governo brasileiro foi o único a desvalorizar a doença, o uso de máscara ou o distanciamento social. Outros o fizeram (com destaque evidente para o anterior presidente dos EUA), usando o mesmo argumento de defesa da economia e do emprego. Todavia, o que torna o caso do Brasil singular é que é o único país no mundo onde o seu presidente fez tudo o que podia para desacreditar não o uso de máscara ou o distanciamento social, mas a vacina. A vacina.

É preciso, talvez, alertar o leitor brasileiro de que o discurso presidencial sobre os possíveis efeitos indesejáveis das vacinas, como pôr homens a “falar fininho” ou cidadãos a “virar jacaré”, não é visto pela comunidade internacional como anedota, mas como problema sério quando a prioridade mundial é vacinar urgentemente toda a gente. Visto de fora, parece que o Brasil se está a vacinar contra a vontade do seu presidente. Para usar a bela expressão do filósofo Vladimir Safatle, o que vemos no Brasil é “a morte sem lágrimas”. O aspecto mais trágico da pandemia é o governo que se recusa a fazer o luto dos seus mortos.

 

Depois, se tivesse que identificar um segundo problema, eu apontaria o aquecimento global. A principal razão da minha opção é esta – há muito que esta questão deixou de ser vista como política setorial para representar hoje uma questão de segurança internacional. É assim que é vista na Europa e, felizmente, é também assim que é agora vista pela administração norte-americana. A desvalorização política da conservação da natureza no Brasil e o progressivo desmantelamento das instituições de proteção ambiental são considerados pela comunidade internacional séria ameaça à biodiversidade e à proteção da Floresta Amazônica. O recente episódio do envolvimento do ministro do Meio Ambiente numa investigação policial de contrabando de madeira expôs perante as instituições internacionais a vontade do governo brasileiro de prosseguir uma agenda política que considera as proteções ambientais como entraves burocráticos ao desenvolvimento. Ao contrário do que pensam os governantes brasileiros, há muita gente no mundo atenta à “passagem da boiada”.

Para terceiro problema escolho aquele que foi o primeiro, a ideia consolidada na comunidade internacional de que o aparelho judicial brasileiro é utilizado para fins políticos. E talvez seja bom não confundir as coisas. A política brasileira tem uma cultura muito entranhada de recurso à Justiça para resolver as suas divergências políticas. Esse caminho é ruim por diversas razões que agora não vêm ao caso. Mas do que estamos aqui a falar é de outras coisas: é de golpadas políticas, da utilização da prisão como arma contra o adversário, do uso do inquérito judicial e do vazamento como instrumento político que o costume tem normalizado. O golpe parlamentar que afastou a presidente Dilma Rousseff e a prisão do presidente Lula lançaram um anátema de suspeição sobre as instituições judiciárias que ­custou caro à sua reputação internacional.

Finalmente, seleciono o problema que para muitos dos meus amigos brasileiros é hoje o primeiro e mais importante, a participação de militares na política. Esse comportamento foi um erro trágico. Um erro para a democracia, evidentemente, mas um erro que terá como primeira vítima o próprio Exército. Ao decidir tomar partido nas questões políticas, as Forças Armadas deixam de ser de todos para serem de alguns – e contra os outros. Vejo aí muitos cidadãos preocupados com golpes militares e vejo outros a sonharem com eles. Pois bem, o meu ponto de vista é muito otimista a esse respeito: o mundo não permitiria. O uso da força para tomar o poder político conduziria a um isolamento absolutamente insustentável para o Brasil. Compreendo muito bem a preocupação de quem viveu os horrores da ditadura e de quem assiste de novo a um ato consentido de insubordinação por parte de um general que abertamente descumpre as normas e os regulamentos democráticos.

Todavia, o que vejo no episódio, sinceramente, é apenas a ruína a que chegou a imagem do Exército e do governo, os quais brincam com coisas sérias até ao dia em que deixarão de ser levados a sério. Os mais maquiavélicos são frequentemente os mais ingênuos.

Eis, portanto, o meu ponto. A principal caraterística da política externa brasileira é que seus problemas são, no essencial, de política interna. Há outros, claro, intrinsecamente diplomáticos e que têm a ver com escolhas e alinhamentos políticos. Mas os principais problemas que afligem hoje a reputação do Brasil no palco internacional são de política interna – e, esses, cabe ao povo brasileiro resolvê-los.

Publicado na edição nº 1162 de CartaCapital, em 17 de junho de 2021.

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