CartaCapital
Às favas a democracia
Para bilionários como Musk, o único valor é a liberdade dos poderosos


Elon Musk comprou o Twitter, um dos primeiros microblogs, por dois motivos. O primeiro é que seu grupo empresarial não possuía nenhuma rede social de escala mundial para acompanhar a conversão das Big Techs nos gigantescos trustes do século XXI, isto é, em agrupamentos com grande poder econômico que atuam em diversos ramos da economia de forma cada vez mais coordenada. Na corrida espacial e na busca por contratos da Nasa, a Amazon tornou-se a grande concorrente de Musk. Seu adversário, Jeff Bezos, dono da Amazon, construiu um truste que atua no comércio eletrônico e a venda de hardwares e dispositivos conhecidos como assistentes virtuais ao domínio de 40% do mercado mundial de nuvem. Bezos apostou em outro tipo de rede social, ao adquirir a GoodReads, lançar o Amazon Prime na área de entretenimento, a plataforma de streaming Twitch e consolidar o trabalho precarizado a partir do Mechanical Turk, entre dezenas de outros empreendimentos. Faltava a Musk uma rede social mais robusta.
A Microsoft comprou o LinkedIn, o Grupo Alphabet possui redes descomunais como o YouTube, e o Grupo Meta controla o Facebook, o Instagram e o cliente de mensagens instantâneas WhatsApp. Curiosamente, no ano passado, o bilionário Musk irritou-se com Mark Zuckerberg, criador e controlador do Grupo Meta, promovendo uma cena digna de pré-primário ou de filmes que cultuam a doutrina do “macho alfa”. Musk desafiou Zuckerberg para uma luta no estilo jaula do Ultimate Fighting Championship (UFC). Disse que daria porradas em seu concorrente, para delírio dos bolsonaristas e recalcados em geral. Musk é uma figura que cultua valores da extrema-direita norte-americana.
O segundo motivo é poder interferir no debate político de modo mais permanente e efetivo. Para isso, retirou o Twitter da Bolsa de Valores e fechou seu capital. Tornou-se, assim, seu único controlador. Mudou inúmeras regras do antigo Twitter e até mudou o nome do microblog para “X”. Musk trouxe para a plataforma a sua concepção de liberdade, ou melhor, a visão que a extrema-direita norte-americana tem da liberdade. Por isso, enfrenta as decisões do Judiciário brasileiro. Liberdade para Musk deve ser entendida como o poder de cada um fazer absolutamente o que puder e quiser. Desse modo, os poderosos e ricos podem agir até o limite de seu poder ou de seu capital. Nesse sentido, liberdade e poder são noções que se confundem no ideário da extrema-direita.
O dono da rede X é um propagandista da extrema-direita mundial
Um dos antigos sócios de Musk no PayPal, o investidor do Vale do Silício Peter Thiel, em um evento promovido pelo Cato Unbound, em abril de 2009, afirmou: “Já não acredito que a liberdade e a democracia sejam compatíveis”. A extrema-direita pensa a democracia como um freio ou bloqueio à liberdade. Como bem descreveu o filósofo libertário Nick Land, a democracia é um vetor, um sentido que exige ou depende do respeito ao Estado e às maiorias. Isso incomoda Musk e seus amigos bilionários. Por isso, desgostam das regras democráticas, pois preferem ter um poder ilimitado. Os neoliberais começaram a aderir a esse pensamento reacionário que se alia e se mistura aos primados neofascistas.
Musk não quer aplicar nossa legislação que proíbe o discurso de ódio e mensagens falsas que podem colocar em risco a saúde da população no Twitter. Desinformar é sinônimo de liberdade de expressão para o dono do X. Essa doutrina é adequada à estratégia da extrema-direita mundial, que se baseia na disseminação da desinformação para formar o caos informacional e anular a importância dos fatos analisados racionalmente.
O novo populismo de extrema-direita, que prefiro nomear de neofascismo, busca, com a disseminação da desinformação, criar o caos informacional, uma situação em que não é possível confiar em mais nada. Tudo deve estar sob suspeição, principalmente as instituições imprescindíveis para a democracia. Apostam tudo na disseminação dos valores reacionários e das ideias de um passado que nunca existiu, mas que acreditam ter sido muito melhor para as classes dominantes da sociedade.
Há um grande fortalecimento da extrema-direita entre os empresários e investidores do Vale do Silício. Estão preocupados em manter seu status quo e lutam com todos os meios possíveis para manter suas empresas desregulamentadas ou sob regras mais suaves. Os dirigentes do Vale do Silício eram conhecidos por seus vínculos com os Democratas, mas esse cenário mudou. Figuras como o CEO da Oracle, Larry Ellison, um dos maiores financiadores políticos da extrema-direita norte-americana, não estão mais em franca minoria. Musk, Thiel e até mesmo o ex-simpatizante da esquerda Marc Andreessen, fundador do Netscape, estão juntos na jornada dos libertários contra a democracia.
A regulamentação das plataformas é urgente. A liberdade não pode ser confundida com poder econômico. Se as regras de respeito à liberdade de expressão das Constituições democráticas, se a proteção dos direitos e garantias individuais não forem aplicadas pelas plataformas, quais preceitos, mandamentos e determinações elas deverão seguir? As regras e os interesses de Musk, Thiel e outros líderes da extrema-direita? Não existe convivência social, nem mesmo nas redes de relacionamento social, sem regras. Os sistemas algorítmicos que organizam os conteúdos que vemos, lemos e ouvimos nas redes são definidos pelas plataformas. Nada pode ser feito dentro do X, do Facebook ou do YouTube sem que essas plataformas concordem. As plataformas têm um verdadeiro moderador das condutas sociais. Esse poder precisa estar submetido às democracias. Sem isso, teremos apenas o totalitarismo digital que Zuboff nomeou de instrumentarismo. •
*Professor da UFABC, especialista em tecnologia.
Publicado na edição n° 1306 de CartaCapital, em 17 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Às favas a democracia’
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