CartaCapital
Arquitetura da escravidão
A luta pela preservação do Congado revela uma face menos conhecida da história de Tiradentes (MG)
Quando quer entrar na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Tiradentes (MG), o Congado Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia precisa encaminhar um ofício à paróquia local. E isso só foi possível depois da intervenção do Ministério Público Federal, em 2022.
Dois anos antes, o grupo havia sido proibido de acessar a igreja quando quisesse porque a diocese tinha considerado a imagem de Anastácia impressa na bandeira do congado uma profanação.
A escrava Anastácia era uma mulher que usava uma mordaça de ferro que lhe foi imposta como punição por não manter relações sexuais com o seu senhor e que acabou se tornando um símbolo da luta contra a escravidão no período do Brasil Colônia. Embora seja tratada pelos negros como uma figura sagrada, não é reconhecida pela Igreja Católica.
Incomodado com a necessidade de sempre pedir autorização para fazer a incursão pelo templo católico, Claudinei Matias do Nascimento, o Mestre Prego, 52 anos, capitão do congado de Tiradentes, fundado em 2011, diz que agora o grupo só ingressa na igreja no período do festejo oficial da manifestação, que acontece em junho.
“A importância de entrar na igreja é que não tem como desvinculá-la das manifestações de matriz africana”, afirma Mestre Prego. O congado foi criado dentro das irmandades negras católicas e remonta, no Brasil, ao século XVII.
Embora sua prática nas igrejas devotadas a santos negros, como a Nossa Senhora do Rosário, seja uma tradição centenária, ela sempre foi marcada por tentativas de proibição.
Parte da comunidade busca hoje a inclusão dos territórios negros nas rotas turísticas das cidades surgidas no Ciclo do Ouro
O trabalho de Mestre Prego na luta contra o apagamento e a preservação da memória negra foi destaque na programação da 14ª edição do Festival Artes Vertentes, realizada no mês passado em Tiradentes. O evento girou em torno de reflexões sobre as influências da diáspora africana em manifestações culturais como música, literatura, teatro, cinema e artes visuais.
Durante o festival, o Congado Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia fez um cortejo pelas ruas da cidade e, além disso, foi tema de uma exposição que reuniu imagens do grupo e vídeos com relatos sobre a manifestação.
Em dois debates do festival, Mestre Prego contou a história do congado e relatou as dificuldades de mantê-lo na cidade histórica emergida no Ciclo do Ouro e um dos principais centros escravagistas do século XVIII em Minas Gerais.
Mestre Prego chegou em Tiradentes, em 2008, para trabalhar como pedreiro. Ele veio do município próximo de Barroso (MG), onde, por influência da família, participava do congado local desde os 6 anos.
Ao chegar à cidade histórica, ele espantou-se com o fato de não encontrar nenhuma manifestação afro-brasileira. “Nem a capoeira, que é a mais básica, tinha”, diz, resumindo a indignação que o fez fundar o Congado Nossa Senhora do Rosário.
“Ninguém está interessado em coisa de preto. Infelizmente, o que eles puderem apagar da história, vão apagar”, diz ele. Mestre Prego é também artesão e faz objetos de decoração com cabaça, bambu e cipó, que são vendidos em alguns lugares da cidade.
O mestre sonha montar o museu do negro em Tiradentes para retratar como era a vida de seus “irmãos” no período colonial. Foram, afinal de contas, os negros escravizados os responsáveis por erguer o patrimônio arquitetônico ali presente.
Ele luta ainda pelo reconhecimento de uma área descampada, fora do centro histórico da cidade, onde corpos de negros e índios foram ocultados durante a escravidão. “Isso é uma missão que tenho em Tiradentes. Alguém tem de lembrar o que esse pessoal passou aqui.”
Para Patrick Arley, antropólogo e fotógrafo com extenso acervo de manifestações afro-brasileiras em Minas Gerais, Mestre Prego faz um trabalho quase arqueológico, uma vez que, além de brigar para manter vivo o congado, ele busca resgatar aquilo que foi apagado. “Ele levanta várias coisas soterradas de práticas racistas em torno das cidades históricas”, informa.
Esse trabalho, na visão de Arley, contribui para trazer à luz uma série de tensões que, em geral, passam despercebidas pelos turistas e mesmo pelos moradores da cidade histórica. Dentre essas tensões estão, justamente, os ataques às manifestações religiosas de matriz africana.
A busca pela inclusão do território negro nas rotas turísticas de Tiradentes mobiliza hoje parte da comunidade local.
Aline Garcia, nascida na cidade, dona de uma pousada e gestora cultural, é uma das integrantes desse movimento. Recentemente, ao lado de Mestre Prego, ela participou da criação de um roteiro turístico que passava pelos caminhos percorridos por pessoas escravizadas.
Mestre Prego, por meio do congado e da busca por contar outras versões da história da cidade, acaba por expor as marcas do racismo ainda presentes no celebrado conjunto arquitetônico colonial de Tiradentes. •
*O jornalista viajou a convite do Festival Artes Vertentes.
Publicado na edição n° 1385 de CartaCapital, em 29 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Arquitetura da escravidão’
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