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Aposta na ignorância

Tarcísio de Freitas vai reduzir os investimentos em educação, apesar da situação precária do setor

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Imagem: Educação/GOVSP e Mônica Andrade/GOVSP
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A redução do piso da educação no estado de São Paulo de 30% para 25% das receitas é uma questão de dias. Aprovada com folga no primeiro turno pelos deputados estaduais, a Proposta de Emenda à Constituição estadual cumpre os trâmites formais de “discussão” interna antes de ser sacramentada pela Assembleia Legislativa. O governador Tarcísio de Freitas e seus aliados recorrem a um eufemismo. Chamam o corte de flexibilização, pois a promessa é repassar à saúde a diferença de 5 pontos porcentuais. Segundo a oposição, não há nenhuma garantia desse remanejamento. Os estabelecimentos de ensino terão 11 bilhões de reais a menos no caixa a partir do próximo ano e teme-se um recuo na pesquisa e nas condições operacionais da USP, Unicamp, Unesp e 5 mil escolas de ensino médio. “Será muito difícil, tudo indica, reverter a situação”, lamenta o deputado Paulo Fiorilo, líder da Federação PT–PCdoB–PV.

A ampla adesão da base governista, afirma Fiorilo, custou caro e foi obtida por meio da liberação de dinheiro. “Essa Assembleia está virando um balcão, onde os deputados negociam para aprovar projetos que são caros à população a troco de emendas”, acusa o deputado. “Parece não haver nenhum constrangimento de fazer esse manejo de recursos sem garantia de que serão destinados à saúde”, ­observa a deputada Mônica Seixas, do PSOL. Não só não há garantia de incremento no atual­ piso da saúde, insiste, como as parcerias público-privadas no setor também se tornaram “um dreno do dinheiro público”. “O governador apresentou a PEC para reduzir recursos da Educação, mas não apresentou outra para aumentar o financiamento obrigatório da saúde.”

Os 30% para a educação foram definidos na Constituinte de 1989, de São Paulo. Desde então, nenhum governador havia tentado alterar esse valor, alerta o economista Thomas Jensen, assessor técnico da Apeoesp, sindicato estadual dos professores. A situação do ensino, alerta, está longe de ser o “mar de rosas” alegado para justificar a “flexibilização”. Atualmente, 45,4% do quadro de professores é composto de “contratações temporárias”, cuja duração é de, no máximo, três anos. O Plano Nacional de Educação estipula que o quadro de profissionais efetivos seja de 90%. “No próximo período serão contratados 15 mil professores, selecionados no último concurso. Mas para resolver o problema dos temporários, seriam necessárias 100 mil novas contratações. Não está na hora de cortar recursos.”

Ao mesmo tempo, o estado sofre com problemas graves de infraestrutura em muitas unidades. Levantamento de CartaCapital mostra que restam 65 escolas de lata em operação, onde estudam em torno de 65 mil alunos. As condições são insalubres, principalmente nos dias quentes, pois os estudantes ficam amontoados em salas de aço galvanizado sem ar condicionado. Essa estrutura começou a ser instalada em 1998, principalmente nas periferias da Zona Sul. A promessa era de uso temporário, mas até hoje não foram substituídas, nem há previsão de quando isto será feito.

Quase metade dos professores é temporária. Resolver esse problema demanda mais, não menos, dinheiro

A procuradora do Ministério Público de Contas, Élida Graziane, pergunta: “Como o estado mais rico da federação permite que jovens saiam do ensino médio com conhecimento equivalente ao da sétima série do ensino fundamental em matemática ou equivalente à oitava série do ensino fundamental em português?” Segundo o Ideb divulgado em 2024, São Paulo caiu em todos os níveis de avaliação. Nos anos iniciais do ensino fundamental, saiu da segunda posição em 2019 para a sexta em 2023. Nos anos finais, a queda foi ainda mais acentuada, do primeiro para o sexto lugar. No médio, do quinto para o oitavo posto. Tentar criar um dilema entre educação e saúde, avalia Graziane, é uma “disputa fratricida”.

Nos 30% estão incluídos os repasses às três universidades estaduais. “É uma política muito capciosa, porque usa a lógica da flexibilização, mas na nossa avaliação é corte de orçamento”, afirma a professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, Michele Schultz, ­atual coordenadora do Fórum das Seis, agremiação que congrega as entidades sindicais e estudantis da Unesp, Unicamp, USP e Centro Paula Souza. “É o caminho para criar uma concorrência entre o ensino básico e o superior em busca de recursos, o que é bastante perverso, e com certeza vai impactar em cheio o orçamento destinado.” Para a professora, a manobra serve para legitimar uma irregularidade que acontece há anos no estado, cometida por sucessivos governadores: parte dos recursos da educação é utilizada para pagar os aposentados e pensionistas. Uma prática irregular, apontada pelo Tribunal de Contas. “Agora ela será regularizada, quando, na verdade, deveria ser extinta.”

Mesmo sem esperança de alterar os votos na Assembleia, as entidades sindicais e estudantis estarão mobilizadas para a próxima votação, garante Schultz. “Vamos fazer um plantão na Alesp, tentando convencer os deputados. Mas tem sido difícil, eles estão irredutíveis.” A presidente da União Paulista de Estudantes Secundaristas, Júlia Sacramento Monteiro, afirma que o processo foi marcado por extrema violência policial contra os manifestantes contrários à PEC. Ainda assim, os estudantes estão organizados para tentar reverter o placar. “O problema é que a política autoritária do Tarcísio tem sido muito violenta contra a gente, e quando se trata de secundaristas, são estudantes muito novos sendo tratados com muita truculência”, revela. A polícia, afirma, tenta barrar a participação dos alunos nas galerias da Alesp “de todas as formas”. “Até as nossas mochilas e garrafas d’água são barradas, só para impedir que a gente possa entrar. É uma tentativa de criminalizar o movimento estudantil.” •

Publicado na edição n° 1338 de CartaCapital, em 27 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Aposta na ignorância’

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