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Alvo preferencial do governo Bolsonaro, a negritude brasileira forma novos quilombos

A busca por representatividade estimulou o surgimento de novas frentes de resistência. De ONGs a coletivos, as comunidades organizam-se

(Foto: SILVIO AVILA / AFP)
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São tantas formas de matar um preto/ Que para alguns sua morte é justificada/ Devia tá fazendo coisa errada/ Se não era bandido, um dia ia ser/ Por ser PRETO sua morte é defendida/ O PRETO sempre merece morrer. A estrofe acima é do poeta e educador social Baticum Proletário, que atua na periferia de Fortaleza, no Ceará, organizando jovens – em quase sua totalidade negros – para enfrentar as dificuldades impostas pelo racismo estrutural no País.

É a partir da arte que Baticum consegue envolver a juventude em um projeto de fortalecimento dessa população, ao promover batalhas de rimas, slams e saraus com temáticas que discutem os problemas sociais. Não por acaso, o tema mais explorado nas rimas, versos e prosas é a violência. De acordo com o mais recente Atlas da Violência, em 2019 os negros representaram 77% das vítimas de homicídios, quase 30 assassinatos por 100 mil habitantes, a maioria deles jovens.

O Atlas revela ainda que um negro tem quase 2,7 vezes mais chance de ser morto do que um branco, o que justifica o movimento de resistência crescente no mesmo Brasil que assassinou, em 20 de novembro de 1695, Zumbi, no Quilombo dos Palmares, data que passou a simbolizar o Dia da Consciência Negra. Desde então, milhões de Zumbis tiveram suas vidas ceifadas pelo simples fato de ter a cor da pele preta.

Marco Bonfim, ativista, pesquisador e professor da Universidade Federal de Pernambuco, cita o escritor Abdias Nascimento para afirmar que existe um projeto de Estado para exterminar a população negra, a partir de uma ação racista promovida pelo aparato oficial. “O racismo é uma relação de poder, uma hierarquia do branco sobre o negro, e isso só acontece porque nunca houve a intenção de se mexer na estrutura social para mudar essa realidade. Nós sempre estamos sujeitos a ‘atitude suspeita’ para legitimar a ação criminosa do Estado contra os nossos corpos. Corpos brancos não são associados a ‘atitudes suspeitas’”, analisa.

Em 2019, quase 80% dos assassinados no Brasil tinham a pele preta

São infindáveis os exemplos de discriminação, perseguição, chacinas e assassinatos deliberados de negros, sobretudo nas favelas e periferias. E é desses mesmos espaços que surgem várias frentes de resistência. Assim como acontece no Ceará, os saraus, slams e batalhas de rimas têm sido utilizados pela juventude de todo o País para denunciar séculos de marginalização. Em Fortaleza, Baticum também coordena uma rede de bibliotecas comunitárias, na qual a maior parte da literatura disponível é de autores negros, compatível com o público que frequenta os locais. “A juventude negra articula-se por meio dessas ações artísticas e culturais, que também são políticas. Esses jovens estão lá batalhando, com poesia, mas mandando o seu recado”, explica o educador social.

Outra frente de organização passa pelo acesso ao ensino superior. Existe um movimento nas periferias que prepara os jovens negros para enfrentar o Enem e entrar na universidade pública. “É evidente o crescimento do número de negros nas universidades, oriundos das cotas raciais, e a atuação deles nos movimentos que lá existem”, ressalta Lindivaldo Júnior, pós-graduado em Políticas e Gestão Cultural pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano. Ana Paula Rosário e Beatriz Sousa são jovens militantes do Instituto da Mulher Negra, na Bahia, e explicam o motivo de a organização ter ficado mais em evidência no governo Bolsonaro.

Duelo de rap no Rio de Janeiro (Foto: Dikran Junior / AGIF / AGIF via AFP)

“A resistência sempre existiu: nas periferias, na universidade, em espaços institucionais… A gente sempre brigou pela garantia da nossa presença, da nossa fala, pela equidade em todos os espaços, mas o governo Bolsonaro não dialoga com as multiplicidades. O público do Bolsonaro é racista, homofóbico, e esses ataques acabam resultando em respostas”, ressalta Ana Paula.

“Não enxergo nenhum governo em que um preto e favelado fosse prioridade, mas hoje temos um governo que é muito mais agressivo e violento, que tem feito ataque direto aos nossos corpos. Mas, anteriormente, a gente vinha se organizando, porque o Estado estava nos matando. De forma geral, nossa resistência tem crescido por meio do boca a boca. E quando Bolsonaro fala que ‘bandido bom é bandido morto’ e as polícias entram nas favelas e matam meninos pretos, é aí que a gente tem uma perspectiva de quem são esses bandidos que Bolsonaro quer ver mortos e que corpos são esses”, completa Beatriz.

Um ponto que há muito tempo incomoda a população negra e que estimulou o surgimento de mais uma frente de resistência tem relação com a representatividade. Os estudiosos da cultura e da história africanas acusam a ideologia ocidental de invisibilizar e tentar “embranquecer” as origens e a ancestralidade da população negra, o que interfere na construção da identidade dos afrodescendentes, que não conhecem suas raízes.

Karina Bezerra, mestre em serviço social, lembra da sua infância, quando era excluída das brincadeiras pelo simples fato de ser negra. Na adolescência, brigava com os traços físicos para se aproximar de um padrão de beleza branco. “Foi difícil construir a minha autoestima, principalmente pela falta de representatividade na mídia. Eu não via gente como eu na televisão. As principais referências eram mulheres loiras: Xuxa, Angélica, Eliana… Então, passei por um processo de negação das minhas raízes, comecei a alisar o cabelo, me sujeitava a isso por influência da minha mãe, minhas tias, mulheres negras que também alisavam, e por entender que o alisamento poderia me deixar mais próxima do padrão de beleza que via na televisão”, desabafa.

“Toda produção de identidade é relacional. Não dá para falar da negritude sem falar da branquitude. Quem inventou o racismo não fomos nós. Há uma falácia, um mito, quando se fala de democracia racial no Brasil. Outro problema a enfrentar é a ideologia do branqueamento. Esses dois fenômenos foram gerados para transmitir a ideia de miscigenação. Aprendemos que temos de ser morenos e não negros, uma tentativa de nos embranquecer. Ser negro no Brasil é doloroso, mas é necessário reconhecer a nossa ancestralidade”, comenta Bonfim.

Estudiosos acusam a ideologia ocidental de invisibilizar e tentar “embranquecer” as origens e a ancestralidade da população negra

Como reação à falta de representatividade na mídia, muitos coletivos organizaram-se nas periferias com o objetivo de formar jovens negros para atuar em uma comunicação mais crítica e na perspectiva de discutir pautas que fossem além de simplesmente ter um profissional negro nas telas de televisão.

“Não há uma cobertura macro feita pela mídia que dê visibilidade a negros e aos problemas enfrentados por essa população. O que se vê é mais uma conexão com o marketing, colocando um profissional negro apresentando um jornal, porque não muda a forma e a concepção jornalística. Só terá mudança quando a mídia resolver discutir a racionalização das pautas raciais, na área de saúde e educação, o desemprego, a fome, questões que atingem em sua maioria os negros. Ou seja, a visibilidade não significa necessariamente representatividade, porque a identidade cultural é apagada, fazendo com que não conheçam a sua história”, analisa Renato Matos, integrante da Desenrola e Não Me Enrola, ONG que atua nas periferias de São Paulo na formação de jovens a partir de um olhar crítico sobre a mídia.

“Ter a consciência de que sou uma mulher preta, periférica, e que estou me formando em jornalismo, me traz sérias reflexões de até onde cheguei. Cada voz preta e periférica que se levanta é um grito a mais na resistência. Os negros não se sentem motivados. A partir do momento que você dá a oportunidade de falarem sobre suas trajetórias, o que pensam, os sonhos, é uma vida que se recupera”, relata Flávia Santos, 20 anos, aluna da ONG Desenrola e Não Me Enrola.

O debate racial pautado pela mídia chegou nos cursos de comunicação. A partir de 2022, a UFPE vai introduzir na grade curricular a disciplina obrigatória Comunicação Antirracista. Na Federal do Rio Grande do Norte, a doutoranda Alice Andrade estuda a mídia negra como forma de resistência antirracista. “As mídias negras são um conjunto de experiências comunicacionais insurgentes que movem pessoas na reescrita de outra narrativa sobre o povo negro. São espaços em que os negros se aquilombolam para construir uma comunicação como forma de resistência, combatendo a exclusão, a invisibilidade e as injustiças sociais e cognitivas do mundo.”

Uma versão condensada dessa reportagem foi publicada na edição n° 1183 de CartaCapital.

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