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Ajuste/ A quadratura do círculo

O ministro Haddad, entre a justiça fiscal e a chantagem do mercado

Ajuste/ A quadratura do círculo
Ajuste/ A quadratura do círculo
Em pronunciamento em cadeia de rádio e tevê, o titular da Fazenda reafirmou a posição do governo – Imagem: Redes Sociais/Ministério da Fazenda
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Em pronunciamento em cadeia de rádio e tevê, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou as linhas básicas do plano para cortar 70 bilhões de reais nos próximos dois anos e cumprir as regras do arcabouço fiscal. O ajuste seria detalhado na quinta-feira 28, após o fechamento desta edição. O governo tenta equilibrar-se entre a defesa dos mais pobres, alguma justiça fiscal e a pressão da Faria Lima. Haverá limitação do reajuste anual do salário mínimo a um teto de 2,5%, embora ­Haddad tenha garantido um aumento acima da inflação, e uma redução dos beneficiários do abono salarial. Só receberá quem ganha até 2.640 reais. Em contrapartida, a equipe econômica promete isenção do Imposto de Renda até a faixa de 5 mil reais a partir de 2026, um acréscimo de 10% na taxação de quem ganha acima de 50 mil, controle dos supersalários do funcionalismo público, da Previdência e das pensões dos militares, sinecuras inaceitáveis a esta altura, e das emendas parlamentares (metade irá, obrigatoriamente, a investimentos em saúde). Promete-se ainda um endurecimento das regras para a liberação do Benefício de Prestação Continuada, que garante a sobrevivência de um enorme contingente de brasileiros. A maioria das medidas depende de aprovação no Congresso e não se sabe se os parlamentares vão topar o acrescimento no imposto do topo da pirâmide. A recomposição da receita é incerta e exigirá um esforço extra da articulação política.

Na tevê, Haddad resumiu a posição do Palácio do Planalto: “Combater a inflação, reduzir o custo da dívida pública e ter juros mais baixos é parte central de nosso olhar humanista sobre a economia. O Brasil de hoje não é mais o Brasil que fechava os olhos para as desigualdades e para as dificuldades da nossa gente. Quem ganha mais deve contribuir mais, permitindo que possamos investir em áreas que transformam a vida das pessoas”. E mais: “A nova medida não trará impacto fiscal, ou seja, não aumentará os gastos do governo. Porque quem tem renda superior a 50 mil reais por mês pagará um pouco mais. Tudo sem excessos e respeitando padrões internacionais consagrados”.

O mundo, ou melhor, a Bolsa caiu – Imagem: iStockphoto

O mercado, obviamente, não viu e não gostou. Na quarta-feira 27, antes do pronunciamento do ministro, o dólar bateu a casa dos 5,90 reais, maior taxa nominal da história. A Bolsa de Valores recuou mais de 1%. A isenção do IR até 5 mil reais, promessa de campanha do presidente Lula, foi considerada “populista”. A Faria Lima conta com a assessoria dos meios de comunicação. Seus preconceitos e sua ideologia seriam tratados como análises técnicas, isentas, até divinas. O fato é que o mercado não se contenta ou não está interessado de fato em um ajuste capaz de colocar a dívida pública em um trilho sustentável e distribuir a conta entre as diferentes classes sociais, com um peso maior para quem ganha mais. A turma da bufunfa move-se por cálculo político. Só aceita uma única opção, o chicote no lombo da tigrada. Sonham em dissociar Lula de sua base eleitoral e, dessa maneira, reduzir as chances de reeleição.

Em entrevista ao portal G1, André ­Roncaglia, diretor-executivo do Brasil no Fundo Monetário Internacional, definiu a quadratura do círculo. “O mercado vai olhar feio porque não vieram os cortes profundos desejados, mas o ministro Fernando Haddad tem como mandato servir a toda a sociedade brasileira, em particular os mais vulneráveis.” Roncaglia acrescenta: “Ainda é cedo para avaliarmos o alcance dos impactos destas mudanças, mas houve um viés progressivo na repartição do ônus do ajuste, ampliando a fatia paga pelos mais ricos e impondo limites ao avanço das emendas parlamentares”.

A pressão do setor financeiro não deve baixar. As lamúrias antes e depois do anúncio do pacote tendem a pressionar o Banco Central a manter a elevação da taxa de juros básica, um dos fatores de maior peso no desequilíbrio das contas públicas. O repique recente da inflação e as incertezas internacionais, sobretudo com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, trazem mais nebulosidade ao clima político e econômico. A ver se o governo e o ministro conseguirão apaziguar o ânimo de gregos e troianos. Adendo: o mais recente levantamento da Paraná Pesquisas indica que, pela primeira vez, uma maioria (51%) desaprova o desempenho de Lula.

Comércio/ A guerra da carne

O Carrefour e a França fazem um grande favor ao Brasil

Boicote com boicote se paga – Imagem: Joédson Alves/Agência Brasil

O governo Lula só tem a agradecer ao Carrefour e aos agricultores franceses, provavelmente orientados pelo Palais de l’Élysée. O pedido de desculpas matreiro do presidente mundial da rede de supermercados, com elogios à qualidade da carne, mas sem recuar da decisão de interromper a compra da commoditie dos países do Mercosul, somado à ofensa de um deputado gaulês, que chamou de lixo o produto brasileiro, é o gancho perfeito para enterrar em definitivo o acordo comercial entre o bloco sul-americano e a União Europeia. Apesar de os negociadores nativos terem arrancado na reta final concessões dos europeus em temas como compras governamentais e adoção de políticas industriais, os termos continuavam desfavoráveis. Os ganhos no comércio agrícola seriam marginais, enquanto o avanço das companhias europeias na venda de equipamentos de alta tecnologia e na prestação de serviços teria o condão de anular as chances de um projeto nacional baseado na transição ecológica, além de limitar o potencial de crescimento das empresas nacionais. ­Emannuel Macron aceitou de bom grado o papel de vilão. Que faça bom proveito. Grandes acordos comerciais nos moldes do acerto ­Mercosul–UE saíram de moda faz tempo. As relações internacionais caminham para outro modelo de parceria, mais próximo da ideia dos BRICS. O resto é fetiche.

9 a 2

O Supremo Tribunal Federal decidiu manter preso o ex-jogador Robinho, condenado a nove anos na Itália por estupro. Foi de goleada. O placar acabou 9 a 2 pela rejeição dos dois pedidos de liberdade. Os ministros rejeitaram a tese de coação. Preso em março deste ano, depois de o Superior Tribunal de Justiça determinar o cumprimento da pena no Brasil, o ex-atleta segue na penitenciária do Tremembé, em São Paulo. “Não se vislumbra violação (…) de normas constitucionais, legais ou de tratados internacionais”, afirmou Luiz Fux, relator do processo.

Líbano/ Um frágil cessar-fogo

Repetem-se os termos fracassados da última tentativa

Um alívio para o Líbano, ainda que momentâneo – Imagem: Mahmoud Zayyat/AFP

Israel e o Hezbollah anunciaram uma trégua de dois meses, mas viceja o ceticismo entre os analistas internacionais. O cessar-fogo é baseado em uma resolução do Conselho de Segurança da ONU de 2006, que pôs fim ao conflito daquele ano. Os termos não foram implementados na sua totalidade, sob a alegação de repetidas violações dos termos por ambas as partes. As áreas ao sul do Rio Litani permanecerão um território livre de armas e soldados, a não ser comandos oficiais do Líbano e integrantes da força de paz das Nações Unidas. Às vésperas do anúncio do acordo, as tropas israelenses intensificaram os ataques ao país vizinho. O primeiro-ministro, ­Benjamin Netanyahu, arvora-se no direito de determinar até quando e de que maneira a trégua prosseguirá. “Se o ­Hezbollah violar o acordo e tentar se rearmar, atacaremos. A duração do cessar-fogo dependerá do que acontecer.” O conflito dura 14 meses. Nesse período, quase 4 mil libaneses foram mortos e 1,2 milhão obrigados a sair de suas casas. Do outro lado, 60 mil israelitas foram removidos de suas residências por segurança.

Feminicídio em alta

Uma mulher é assassinada no mundo a cada dez minutos, revela um levantamento das Nações Unidas em 107 países. O maior número de crimes foi registrado no continente africano. O local menos seguro é o próprio lar. Cerca de 60% dos homicídios são cometidos por parceiros, parentes ou conhecidos. “A violência contra mulheres e meninas não é inevitável”, salienta Sima Bahous, diretora-executiva da ONU Mulheres. “Precisamos de legislação robusta, melhora na coleta de dados, maior responsabilização governamental, uma cultura de tolerância zero e o aumento do financiamento a entidades de defesa dos direitos das mulheres.”

Nicarágua/ A ditadura familiar de Ortega

Reforma constitucional consolida o poder do ex-guerrilheiro

O casal adapta as leis à sua sede de poder – Imagem: Jairo Cajina/Presidência da Nicarágua/AFP

Submetido ao poder presi­dencial, o Parlamento da ­Nicarágua aprovou uma ampla reforma da Constituição. Um total de 38 artigos foram revogados e 143 dos 198 restantes, modificados. O Congresso criou o cargo de copresidente, exercido por Rosario Murillo, mulher de Daniel Ortega e ­atual vice-presidente do país. Esse último cargo será agora ocupado pelo filho do casal, Laureano Ortega ­Murillo. Os copresidentes controlarão os demais poderes. Jornalistas e integrantes da Igreja Católica serão monitorados, com aval da nova Carta Magna. O ­mandato presidencial foi ­ampliado de cinco para seis anos, o que adia as próximas eleições de 2026 para 2027. As milícias paramilitares passam a servir de apoio à polícia nacional. As cores da bandeira ostentarão o vermelho e o preto, adotados pela Frente Sandinista de Libertação Nacional. Ex-guerrilheira e historiadora, Dora María Téllez lamenta: “Notamos há alguns meses o processo sucessório de Daniel Ortega, que está ­doente e idoso, para garantir ­Rosario ­Murillo como su­cessora. ­Rosario já é ­vice-presidente, agora ela tem todo o poder real e o poder formal”.

Publicado na edição n° 1265 de CartaCapital, em 28 de junho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A Semana’

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