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A palavra de Deus e a palavra da Mulher

Expor, fragilizar e violar vítimas de estupro não deve e não pode ser considerada como estratégia de defesa válida

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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João Teixeira de Farias é um médium que desde 1976 dedica-se ao atendimento público em uma casa de tratamento espiritual na cidade de Abadiânia, em Goiás. Por suas ações de amparo e cura ao longo destes mais de quarenta anos passou a ser chamado João “de Deus”.

O restante da história já é do conhecimento de todos e todas. E é a partir daí que vou tecer algumas considerações sobre as vozes das mais de quinhentas vítimas que decidiram romper o silêncio e expor suas dores sob os holofotes e os julgamentos.

O estupro é o crime com o maior o índice de subnotificação no mundo. Pesquisas mostram que somente entre 10% e 35% das vítimas de violência sexual denunciam seus agressores. Sendo que, dentre os mecanismos que impõem o silêncio às vítimas, está a reiteração de uma narrativa social e jurídica de desconstrução moral das mulheres que ousam arrancar a mordaça.

De modo corrente ouve-se repetidas vezes, inclusive nas entrelinhas dos discursos de integrantes do Ministério Público e da polícia investigativa, que “jogar” com os preconceitos[1] em relação às mulheres, ainda tão arraigados em nossa sociedade faz parte de uma estratégia de defesa comum, contra a qual aparentemente nada se tem a dizer.

Somente na aparência.

Como coletâneas de trabalhos criminológicos já demonstraram, é fato que um dos caminhos defensivos para o silenciamento e descrédito da vítima com relação à violência sexual consiste no conjunto de questionamentos que tendem a ser postos diante das ofendidas, tanto ao longo da investigação, como durante o processo. Contudo, compreensão do significado da desconstrução moral das vítimas é mais do que uma constatação criminológica feminista. Ela tem repercussões no processo.

Leia também: Entenda o gaslighting, estratégia de defesa de João de Deus

Em uma (ir)real e antijurídica “inversão do ônus da prova”, exige-se que a vítima demonstre que seu comportamento não deu ensejo ao ato contra ela própria praticado. E, ainda mais, que ela prove que sua palavra merece algum crédito. Um modus operandi que não é, e não pode ser, legal e constitucionalmente, considerado sequer como se estratégia de defesa fosse.

É preciso que se compreenda, com relação à postura de quem atua no processo, que todo e qualquer ato que atente contra a moral da mulher em, como de regra ocorre, flagrante desconexão com o que está circunscrito ao conjunto probatório que realmente importa para fins de absolvição é ilegal pela violação que representa ao princípio da dignidade da pessoa humana, aos documentos internacionais de proteção às vítimas dos quais nosso país é signatário e pela repercussão que todo este conjunto normativo tem na legislação processual penal brasileira.[ii]

Ao longo da história da humanidade, especialmente a partir da Idade Média, a palavra da mulher sempre foi alvo de desconfiança. A mulher sempre foi descrita como enganadora, mentirosa, vingativa, como o mal em si pelo tão só fato de ser mulher.

Não à toa Heinrich Kramer e James Sprenger terem escrito, no século XV, que “a razão natural para isso é que ela – a mulher – é mais carnal que o homem como fica claro pelas inúmeras abominações carnais que pratica. Deve-se notar que houve um defeito na fabricação da primeira mulher, pois ela foi formada por uma costela de peito de homem, que é torta. Devido a esse defeito ela é um animal imperfeito que engana sempre.”[iii]

O que hoje se faz pela mídia, pelas redes sociais, esta sim, com a devida vênia, é uma estratégia. Uma secular estratégia da qual centenas de mulheres ainda hoje, e o caso João de Deus está aí para mostrar, continuam vítimas.

Leia também: João de Deus e o machismo nosso de cada dia

Todos e todas sabemos que em casos de crime de estupro o imaginário social, androcêntrico e misógino, não raras vezes, é tomado como ponto de partida para as decisões judiciais. De modo que, em casos rumorosos como o que envolve João de Deus, a colocação em dúvida sobre a “idoneidade moral” das vítimas aparece como ponto chave da construção de uma narrativa que transbordará para os autos.

O ataque à moral feminina é perverso em relação à sociedade como um todo, por alimentar o preconceito fundado no ódio às mulheres mediante a desvalorização de sua palavra. Mas também é, sobretudo, a reiteração de uma cultura jurídica machista na qual o exercício da atividade defensiva não encontra limites, nem mesmo os dados pelo Texto Constitucional.

É preciso que advogados, advogadas, defensores ou defensoras, públicos ou dativos compreendam, definitivamente, que é possível realizar a defesa do réu sem violar, fragilizar, expor ainda mais a vítima.

Creio, sinceramente, que é possível a mais intransigente defesa dos direitos e garantias penais e processuais do acusado sem que se recorra a expedientes de desqualificação da vítima. Não somente porque as vítimas mereçam respeito, e merecem. Mas porque a sociedade e o Direito brasileiros, muito especialmente nestes tempos de encerramento de um ciclo democrático que vivemos, precisam mais do que narrativas que remontam ao tempo em que a palavra de Deus justificava a crença de que a mulher era a representação do mal.

Soraia Mendes é PhD em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela UFRJ, Doutora em Direito pela UnB, Mestre em Ciência Política pela UFRGS, escritora, professora e advogada especialista em direitos humanos.

[1] Não esqueçamos que segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública 42% dos homens acham que a violência sexual acontece porque a vítima “não se dá ao respeito” ou usa roupas provocativas.
[ii] Neste sentido dizem Rubens Casara e Antônio P. Belchior que todo “ato estatal que importe vitimização secundária (nova lesão à vítima) é ilegal, por violar o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana” (CASARA & BELCHIOR, Teoria do processo penal brasileiro, 2013).
[iii] Ver: Malleus Maleficarum, Parte I, questão 6.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

João Teixeira de Farias é um médium que desde 1976 dedica-se ao atendimento público em uma casa de tratamento espiritual na cidade de Abadiânia, em Goiás. Por suas ações de amparo e cura ao longo destes mais de quarenta anos passou a ser chamado João “de Deus”.

O restante da história já é do conhecimento de todos e todas. E é a partir daí que vou tecer algumas considerações sobre as vozes das mais de quinhentas vítimas que decidiram romper o silêncio e expor suas dores sob os holofotes e os julgamentos.

O estupro é o crime com o maior o índice de subnotificação no mundo. Pesquisas mostram que somente entre 10% e 35% das vítimas de violência sexual denunciam seus agressores. Sendo que, dentre os mecanismos que impõem o silêncio às vítimas, está a reiteração de uma narrativa social e jurídica de desconstrução moral das mulheres que ousam arrancar a mordaça.

De modo corrente ouve-se repetidas vezes, inclusive nas entrelinhas dos discursos de integrantes do Ministério Público e da polícia investigativa, que “jogar” com os preconceitos[1] em relação às mulheres, ainda tão arraigados em nossa sociedade faz parte de uma estratégia de defesa comum, contra a qual aparentemente nada se tem a dizer.

Somente na aparência.

Como coletâneas de trabalhos criminológicos já demonstraram, é fato que um dos caminhos defensivos para o silenciamento e descrédito da vítima com relação à violência sexual consiste no conjunto de questionamentos que tendem a ser postos diante das ofendidas, tanto ao longo da investigação, como durante o processo. Contudo, compreensão do significado da desconstrução moral das vítimas é mais do que uma constatação criminológica feminista. Ela tem repercussões no processo.

Em uma (ir)real e antijurídica “inversão do ônus da prova”, exige-se que a vítima demonstre que seu comportamento não deu ensejo ao ato contra ela própria praticado. E, ainda mais, que ela prove que sua palavra merece algum crédito. Um modus operandi que não é, e não pode ser, legal e constitucionalmente, considerado sequer como se estratégia de defesa fosse.

É preciso que se compreenda, com relação à postura de quem atua no processo, que todo e qualquer ato que atente contra a moral da mulher em, como de regra ocorre, flagrante desconexão com o que está circunscrito ao conjunto probatório que realmente importa para fins de absolvição é ilegal pela violação que representa ao princípio da dignidade da pessoa humana, aos documentos internacionais de proteção às vítimas dos quais nosso país é signatário e pela repercussão que todo este conjunto normativo tem na legislação processual penal brasileira.[ii]

Ao longo da história da humanidade, especialmente a partir da Idade Média, a palavra da mulher sempre foi alvo de desconfiança. A mulher sempre foi descrita como enganadora, mentirosa, vingativa, como o mal em si pelo tão só fato de ser mulher.

Não à toa Heinrich Kramer e James Sprenger terem escrito, no século XV, que “a razão natural para isso é que ela – a mulher – é mais carnal que o homem como fica claro pelas inúmeras abominações carnais que pratica. Deve-se notar que houve um defeito na fabricação da primeira mulher, pois ela foi formada por uma costela de peito de homem, que é torta. Devido a esse defeito ela é um animal imperfeito que engana sempre.”[iii]

O que hoje se faz pela mídia, pelas redes sociais, esta sim, com a devida vênia, é uma estratégia. Uma secular estratégia da qual centenas de mulheres ainda hoje, e o caso João de Deus está aí para mostrar, continuam vítimas.

Todos e todas sabemos que em casos de crime de estupro o imaginário social, androcêntrico e misógino, não raras vezes, é tomado como ponto de partida para as decisões judiciais. De modo que, em casos rumorosos como o que envolve João de Deus, a colocação em dúvida sobre a “idoneidade moral” das vítimas aparece como ponto chave da construção de uma narrativa que transbordará para os autos.

O ataque à moral feminina é perverso em relação à sociedade como um todo, por alimentar o preconceito fundado no ódio às mulheres mediante a desvalorização de sua palavra. Mas também é, sobretudo, a reiteração de uma cultura jurídica machista na qual o exercício da atividade defensiva não encontra limites, nem mesmo os dados pelo Texto Constitucional.

É preciso que advogados, advogadas, defensores ou defensoras, públicos ou dativos compreendam, definitivamente, que é possível realizar a defesa do réu sem violar, fragilizar, expor ainda mais a vítima.

Creio, sinceramente, que é possível a mais intransigente defesa dos direitos e garantias penais e processuais do acusado sem que se recorra a expedientes de desqualificação da vítima. Não somente porque as vítimas mereçam respeito, e merecem. Mas porque a sociedade e o Direito brasileiros, muito especialmente nestes tempos de encerramento de um ciclo democrático que vivemos, precisam mais do que narrativas que remontam ao tempo em que a palavra de Deus justificava a crença de que a mulher era a representação do mal.

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[1] Não esqueçamos que segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública 42% dos homens acham que a violência sexual acontece porque a vítima “não se dá ao respeito” ou usa roupas provocativas.
[ii] Neste sentido dizem Rubens Casara e Antônio P. Belchior que todo “ato estatal que importe vitimização secundária (nova lesão à vítima) é ilegal, por violar o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana” (CASARA & BELCHIOR, Teoria do processo penal brasileiro, 2013).
[iii] Ver: Malleus Maleficarum, Parte I, questão 6.
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