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A hora e vez das superbaterias

O Brasil prepara um leilão para integrar o armazenamento ao sistema elétrico e reorganizar a operação da rede

A hora e vez das superbaterias
A hora e vez das superbaterias
Antes tarde. O Brasil chega atrasado, mas terá acesso a tecnologias mais maduras, diz Brandt, do Grupo Energia – Imagem: Redes Sociais/Atlas RE e Redes Sociais/Grupo Energia
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O Brasil aprendeu a gerar energia limpa em escala. Usinas solares se multiplicaram na última década e parques eólicos redesenharam a paisagem do Nordeste, criando uma matriz ainda mais diversificada. Uma questão permaneceu, porém, em aberto, o País ainda não encontrou uma forma eficiente de guardar a energia produzida pelo sol do meio-dia ou pelo vento da madrugada. Sem um sistema capaz de deslocar essa geração para os horários de maior consumo, parte do recurso renovável se perde, a rede opera sob estresse e as térmicas continuam a ser acionadas para equilibrar o sistema.

Enquanto a geração renovável crescia, o sistema elétrico passou a enfrentar o desafio de acomodar volumes cada vez maiores de energia produzidos fora dos horários de consumo. Hidrelétricas reduziram a geração para evitar sobrecarga da rede e parques solares passaram a lidar com cortes frequentes, fenômeno que ganhou escala no Nordeste. A operação diária passou a depender de ajustes constantes, e a ausência de um mecanismo de armazenamento tornou evidente a necessidade de uma nova etapa de planejamento.

A contratação de sistemas de armazenamento em larga escala marca um ponto de virada da política energética brasileira. O leilão de capacidade previsto para abril de 2026 será o primeiro a tratar as superbaterias como partes estruturantes da operação da rede. Para Rubens ­Brandt, CEO do Grupo Energia, esta é a chave para entender o momento: o sistema produz muito, mas consome em outra hora. O resultado é um volume ­grande de ­curtailment e uma dependência das termelétricas para manter a estabilidade nos casos de oscilações bruscas. A função do armazenamento, diz, é deslocar energia entre períodos de sobra e períodos de necessidade, de forma a reduzir cortes, proteger a operação e diminuir os custos.

A leitura jurídica segue na mesma direção. As advogadas Ana Karina Souza, Stefanie Olives e Camila Galvão, do escritório Machado Meyer, explicam que o leilão será um primeiro teste institucional, pois o armazenamento só funciona quando parâmetros de disponibilidade, regras de degradação e critérios de ­desempenho refletem as condições reais de operação da rede. Para elas, o momento é crítico e exige uma resposta rápida para manter a estabilidade. O problema, dizem, não está na falta de oferta, mas na falta de flexibilidade para usar a energia que o sistema possui. Do lado tributário, os especialistas do escritório destacam que a estrutura de custos influencia diretamente a viabilidade dos projetos. Apontam que a combinação de isenções – IPI, PIS/Cofins e a possibilidade de alíquota zero no Imposto de Importação – reduz o Capex em um setor marcado por carga tributária próxima de 70% sobre equipamentos importados.

A dimensão prática também pesa. Segundo análises do setor, a implantação de grandes parques de baterias hoje leva entre 18 e 24 meses, prazo que aparece nos estudos apresentados por fabricantes ao governo e nas projeções da Empresa de Pesquisa Energética. O gargalo raramente está na obra civil, reforça Brandt. Os maiores riscos estão na importação dos equipamentos, no processo de conexão à rede e na disponibilidade de transformadores, disputados globalmente após os Estados Unidos ampliarem restrições ao material chinês.

O objetivo é aproveitar melhor a eletricidade gerada por parques eólicos e solares

Outro ponto decisivo é a localização dos sistemas. A tecnologia não será tratada como extensão de usinas solares ou eólicas, mas como um recurso sistêmico posicionado em barramentos estratégicos. Documentos da EPE e diretrizes do Operador Nacional do Sistema apontam exatamente nessa direção: o valor da bateria está em reforçar trechos da rede onde há variações de fluxo, congestionamentos ou necessidade de resposta instantânea. Brandt, que acompanha a dinâmica da transmissão no Nordeste e no Centro-Oeste, afirma que muitos cortes hoje não decorrem da falta de linhas, mas da incapacidade de absorver oscilações rápidas de geração. As superbaterias funcionam como amortecedores que suavizam essas variações e reduzem o acionamento de térmicas.

A presença internacional começa a moldar o setor. A Nota Técnica 138 do Ministério de Minas e Energia, ao citar estudos da Agência Internacional de Energia, coloca China e Estados Unidos na liderança global dos sistemas de armazenamento. Fabricantes chineses dominam a cadeia pela escala, enquanto fornecedores norte-americanos e europeus atuam onde certificações específicas exigem padrões rigorosos. O Brasil importa equipamentos e integra soluções com base na estrutura global existente. Fábio Bortoluzo­, CEO da Atlas Renewable Energy no Brasil, observa que o País chega atrasado, mas em um momento no qual as tecnologias estão mais maduras. A empresa opera BESS no Chile e considera que o Brasil tende a seguir trajetória semelhante, desde que o arcabouço regulatório permita remunerar serviços de frequência, potência rápida e controle de tensão.

Do lado da demanda, o mercado privado começa a se reorganizar. Brandt relata que comercializadoras estão empenhadas em estruturar projetos para clientes comerciais e industriais interessados em suavizar picos de consumo e reduzir ­custos associados à ponta. Indústrias eletrointensivas, data centers, operadores logísticos e varejistas aparecem entre os setores que estudam soluções próprias, com ou sem geração solar associada. Em paralelo, geradores renováveis enxergam no armazenamento uma forma de reduzir o curtailment e aumentar a previsibilidade da entrega.

O leilão de 2026 será a primeira medida do apetite do setor. As análises técnicas falam em algo entre 2 e 8 ­gigawatts-hora, distribuídos em projetos de diferentes portes. O número definitivo dependerá do desenho regulatório e da remuneração dos serviços prestados, mas o consenso entre especialistas é de que a contratação inaugura uma nova fase para o SIN. Depois de anos investindo em geração renovável, o País volta-se agora para a flexibilidade, a engrenagem que faltava para usar, sem desperdício, a energia produzida. •

Publicado na edição n° 1391 de CartaCapital, em 10 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A hora e vez das superbaterias’

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