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Ganha forma a denúncia da PGR contra Bolsonaro por tentativa de golpe

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Imagem: Mateus Bonomi/Agif/AFP
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O coronel do Exército Marcelo Costa Câmara personificava o “sistema particular” de informações que Jair Bolsonaro dizia ter. Assessor especial do então presidente e um dos escolhidos pelo capitão para auxiliá-lo (pago com verba pública) após o mandato, Costa Câmara tinha a missão no fim de 2022 de monitorar os passos do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. A vigilância fazia parte de uma conspiração para encarcerar o juiz e foi a razão de sua prisão preventiva ter sido decretada em fevereiro pelo STF na Operação ­Tempus Veritatis, a mais contundente ação da Polícia Federal na busca de provas sobre os planos golpistas de Bolsonaro para reverter à força a derrota nas urnas. O coronel acabou solto em 16 de maio, e a ordem assinada por Moraes continha uma informação preocupante para o ex-presidente. Paulo Gonet Branco, o procurador-geral da República, considera que a investigação da tentativa de golpe “encontra-se em via de conclusão”.

O procurador-geral é o único autorizado a acusar um cidadão de crime comum perante o Supremo. Como as investigações sobre a tentativa de golpe correm na Corte, o fato de estarem “em via de conclusão” significa que se aproxima o acerto de contas de Bolsonaro com a lei, daí o capitão e seus aliados barganharem votos no Congresso em troca de anistia. Que houve crime nos planos golpistas e que há pistas de culpa do ex-presidente, Gonet não tem dúvida faz tempo. Expressa tal pensamento desde o julgamento de Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral há cerca de um ano, caso em que atuou em nome da Procuradoria. Quatro dias depois de assumir a PGR, em dezembro passado, havia escrito em um documento enviado ao Supremo: “As medidas requeridas encontram-se fundamentadas na existência de materialidade delitiva e nos indícios de autoria apontados pela autoridade policial”. Era um parecer sobre a intenção da PF de realizar buscas e prisões. A operação Tempus Veritatis, ou “hora da verdade” em latim, foi às ruas em 8 de fevereiro. Em contextos criminais, “materialidade” quer dizer a existência de provas a respeito de um determinado crime.

A investigação da tramoia está em “via de conclusão”, informou o procurador-geral em 16 de maio

Com base em relatos de gente informada a respeito do andamento do caso e em papéis assinados por Gonet, é possível montar um quebra-cabeça e enxergar a denúncia à vista contra Bolsonaro. Os crimes principais a serem imputados ao capitão são tentativa de golpe de Estado (de 4 a 12 anos de prisão) e de abolição violenta do Estado democrático de Direito (de 4 a 8 anos), ambos previstos na lei 14.157, de 2021. O enredo se estende de julho de 2022 a janeiro de 2023. Começa com a disposição do ainda presidente de convencer seus auxiliares no governo e seus partidários de que a eleição seria “roubada”, iniciativa encorpada por uma reunião ministerial de 5 de julho e um encontro com embaixadores estrangeiros 13 dias depois. O capítulo final da trama, o “ápice”, na definição de Gonet, foi o levante de 8 de janeiro de 2023 em Brasília. Entre um e outro, há os episódios do “bloqueio de rodovias”, dos “acampamentos na porta de quartéis”, do “decreto golpista”, do “vandalismo da sede da PF” e do “plano de atentado a bomba no aeroporto de Brasília”.

Em 6 de maio, o Supremo recebeu da 8ª Vara Criminal de Brasília a íntegra do processo de apuração do atentado terrorista. No mesmo dia, encaminhou o cartapácio a Gonet. O procurador havia pedido a Moraes, em 11 de abril, acesso ao material. Ao analisá-lo, entendeu ser necessário que a PF se debruçasse mais profundamente sobre o episódio. Provas ou indícios existentes, escreveu em uma manifestação ao STF, “podem influir na investigação em trâmite no âmbito dessa Corte, razão pela qual está caracterizado o liame de conexão”. A “investigação” a que se refere o “xerife” é aquela da tentativa de golpe.

Gonet, o procurador-geral, junta as últimas peças do quebra-cabeça

O plano da bomba levou à condenação de três réus pela Justiça Federal em Brasília em 2023. George Washington de Oliveira Souza, gerente de um posto de gasolina no Pará responsável por montar o explosivo, pegou 9 anos. Alan Diego dos Santos Rodrigues, ex-candidato a vereador em Comodoro, cidade do Mato Grosso, pegou 5 anos. Coube a ele fazer o artefato chegar ao aeroporto de Brasília. Wellington Macedo de Souza, blogueiro do Ceará, pegou 6 anos por ter colocado a bomba em um caminhão-tanque de combustível nas imediações do aeroporto em 24 de dezembro de 2022. Só não houve explosão porque o motorista do caminhão encontrou a bomba e chamou a polícia.

Souza foi preso no mesmo dia. Em depoimento à Polícia Civil do Distrito Federal, disse que o objetivo do atentado era induzir Bolsonaro, ainda presidente, a decretar Estado de Sítio e, com o apoio de militares, impedir a posse de Lula. O gerente dedurou Rodrigues, que viria a se entregar à polícia em 17 de janeiro de 2023. Macedo só seria capturado em setembro, no Paraguai. Cumpre pena em regime fechado. Rodrigues está no semiaberto desde novembro e Souza conseguiu o benefício em 18 de maio. O atentado havia sido planejado na porta do QG do Exército em Brasília, um dos inúmeros acampamentos bolsonaristas montados na época da eleição. Acampamentos que, na visão de Gonet, são parte da tramoia golpista.

Se condenado, as penas somadas de Bolsonaro podem chegar a 20 anos de prisão

O anúncio do resultado da eleição em 30 de outubro de 2022, diz o procurador-geral, “assanhou o movimento antidemocrático, atiçando a convocação, por meio de redes sociais, de um levante contra o Estado de Direito e o governo eleito. Os grupos iniciaram ações de fechamento de rodovias pelo País e de instalação de acampamentos às portas de unidades militares, como, por exemplo, em Brasília. Os procedimentos se mostravam coordenados e articulados contra a democracia”. A descrição consta de uma acusação criminal apresentada ao Supremo na segunda-feira 20 contra um casal de empresários, Horst Bremer Jr. e Lilian Bremer Vogelbacher, e mais sete envolvidos nos bloqueios de rodovias em Santa Catarina. A turma foi acusada de associação criminosa, união de ao menos três indivíduos para cometer delito – não importa se conseguiram – e de tentativa de abolir com violência o Estado Democrático de Direito. A primeira acusação prevê pena de um a três anos de cadeia. A segunda, de quatro a oito anos. Cabe ao ­Supremo analisar a denúncia e decidir se converte os denunciados em réus ou se será necessário continuar a investigação.

Os acusados participaram de acontecimentos criminosos a partir das oito e meia da noite de 30 de outubro de 2022, conforme a Procuradoria-Geral. Assim que o resultado da eleição foi oficializado, começaram os bloqueios de estradas catarinenses. Até 7 de novembro, 82 pontos rodoviários seriam interditados. Os alvos eram a BR-101, principal rodovia a cortar o País de Norte a Sul, e a ­BR-470, importante via que chega à cidade portuá­ria de Itajaí. Nas cercanias dos pontos bloqueados, havia banheiros químicos e tendas de venda de água e comida, sinal de financiamento, planejamento e disposição dos manifestantes para protestar por algum tempo. Com gritos e faixas, pregavam o golpe militar, o fechamento do Supremo e a prisão de Lula.

O 8 de Janeiro foi o ápice de uma trama iniciada meses antes. O casal Bremer será julgado por incentivar os bloqueios de estradas catarinenses

A PF vasculhou redes sociais e outras fontes e examinou nove vídeos sobre os bloqueios. Em uma gravação de 6 de novembro, aparece um casal de empresários a declarar apoio aos atos e a convocar a população a aderir: Bremer Jr. e Lilian. Estes teriam topado dar folga a seus funcionários para que engrossassem os protestos. O coração das empresas do casal fica na cidade de Rio do Sul, de 72 mil habitantes, um dos pontos nevrálgicos das barreiras. Segundo a defesa da dupla, o processo no STF dará oportunidade para os acusados provarem sua inocência. “A compreensão dos fatos delituosos atribuídos a eles não se desprende desse contexto de militância política abusiva e de violenta insurreição contra os resultados das eleições presidenciais de 2022, em que se buscou impedir o exercício da Presidência pelo candidato eleito. O conjunto de atos antidemocráticos chegou ao seu ápice em 8 de janeiro de 2023”, anota Gonet na denúncia contra os Bremer.

A “insurreição” foi alimentada por Bolsonaro por meio da desconfiança propagada contra a lisura da eleição e das urnas. É o que pensa o atual PGR desde sua atuação no TSE no processo contra o capitão por conta da reunião com cerca de 60 embaixadores estrangeiros em 18 de julho de 2022 no Palácio da Alvorada. O julgamento terminou em junho de 2023 com a condenação de Bolsonaro a 8 anos de inelegibilidade. Motivos: abuso de poder político, uso da máquina pública em proveito próprio e uso indevido dos meios de comunicação. No discurso aos diplomatas, o candidato à reeleição quis “provar” que o pleito seria “roubado” em favor de Lula. Suas intenções no encontro foram adiantadas a um grupo de ministros em uma reunião secreta em 5 de julho no Palácio do Planalto, cujo teor veio a público em 2024. O encontro no Alvorada foi transmitido pela tevê Brasil, controlada do governo, e o vídeo feito pela emissora foi posteriormente replicado nas redes sociais de Bolsonaro. Ou seja, suas palavras chegaram muito além dos ouvidos diplomáticos.

O coronel Câmara espionava Moraes. O Congresso terá coragem de anistiar os golpistas? – Imagem: Redes sociais e Bruno Spada/Ag. Câmara

“O chamado à desconfiança nas eleições não rendeu ao candidato a maioria dos votos, mas provocou reações de ­desabrida e descomedida desconfiança de parcela da população sobre a legitimidade dos resultados das urnas, como jamais se viu desde o advento da Constituição de 1988”, declarou Gonet em nome da Procuradoria em 22 de junho de 2023, durante uma das sessões de julgamento de Bolsonaro. “É notório que, depois das eleições, aconteceu uma inédita mobilização de populares que rejeitavam aberta e publicamente o resultado­ do pleito, recusando-lhe legitimidade. Acampamentos pedindo medidas de ruptura da ordem constitucional, manifestações violentas de rua e bloqueio de rodovias foram promovidos por pessoas que aderiram à ideia da ilegitimidade das eleições. Estão ainda presentes e nítidas as imagens do dia 8 de janeiro último de destruição e de acinte aos poderes constituídos.”

Entre os capítulos violentos da trama desenrolada entre julho de 2022 e janeiro de 2023, há mais um digno de nota, a arruaça na capital federal no dia da diplomação de Lula pelo TSE como presidente eleito. Os distúrbios começaram após a prisão temporária, decretada por Moraes, de um indígena xavante e bolsonarista do Mato Grosso, José Acácio Serere, defensor da resistência armada à diplomação de Lula. Fiéis de Bolsonaro tentaram invadir a sede da PF para libertá-lo e, no embalo, cometeram atos de vandalismo na cidade. Duas semanas depois, a PF e a Polícia Civil de Brasília realizaram a primeira fase da Operação Nero, que investiga o caso, e prenderam quatro suspeitos: a publicitária Klio ­Damião ­Hirano, os pastores Atilla Reginaldo Franco de Melo e Joel Pires Santana e o empresário Samuel Barbosa Cavalcante. O quarteto frequentava o acampamento na porta do QG do Exército em Brasília, ponto de partida de um enorme contingente de golpistas do 8 de Janeiro.

Em fevereiro deste ano, a PF fez outra batida no âmbito da mesma investigação. Foi às ruas em São Paulo, Brasília e Rondônia. Neste último estado, ­duas torres de energia caíram, por sabotagem, na madrugada de 9 de janeiro de 2023. Uma terceira tombaria dias depois. Nos quatro casos, um mesmo método, conforme apurações da Agência Nacional de Energia Elétrica, a Aneel, reveladas pela Agência Sporlight com base na Lei de Acesso à Informação: a retirada dos parafusos da base de sustentação das torres.

Alexandre de Moraes, em resposta à bravata de Eduardo Bolsonaro: “O cabo, o soldado, o coronel… Estão todos presos”

Os atos violentos dos partidários de Bolsonaro foram acompanhados de um capítulo de bastidor fundamental na acusação à vista contra o ex-presidente. Trata-se da preparação daquele decreto golpista com o qual Bolsonaro anularia o resultado da eleição, faria uma intervenção no TSE e mandaria prender Alexandre de Moraes. Eis o motivo de o coronel Marcelo Costa Câmara, aquele do “sistema particular” de informações, vigiar os passos do juiz no fim de 2022. A PF tem cópias da minuta do decreto. A existência do documento foi confirmada em depoimentos, entre fevereiro e março deste ano, por dois ex-chefes militares de Bolsonaro: o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Jr., da Aeronáutica, e o general Marco Antonio Freire Gomes, do Exército.

A iminência de um acerto de contas do ex-presidente com a Justiça faz com que ele e seu partido, o PL, tenham empunhado a bandeira da “anistia”. No ato na Avenida Paulista em fevereiro, realizado dias depois da Operação Tempus Veritatis ter levado ao confisco de seu passaporte e à prisão preventiva de ex-colaboradores, o capitão implorou: “Nós pedimos a todos 513 deputados, 81 senadores, um projeto de anistia para que seja feita justiça em nosso Brasil”. A propósito: Bolsonaro pretendia visitar Israel entre 12 e 18 de maio, mas Moraes negou a devolução provisória do passaporte. Gonet, o procurador-geral, opinou contra a devolução.

Na busca por anistia, o PL colocou a reivindicação no meio das negociações de seus votos nas eleições que em fevereiro de 2025 vão escolher os sucessores de Arthur Lira, presidente da Câmara, e de Rodrigo Pacheco, do Senado. O chefe da sigla, Valdemar Costa Neto, tem falado abertamente sobre a barganha. “Vamos colocar isso na mesa, sim. Tanto na eleição da Câmara quanto na do Senado”, disse ao Globo de 11 de maio. Entre os pré-candidatos à vaga de Lira, o mais, digamos, sensível à tese da anistia é Elmar Nascimento, deputado baiano do União Brasil. Bolsonaro não quer nem ouvir falar de voto do PL no paulista Marcos Pereira, do Republicanos, empenhado em cortejar Lula do jeito que pode. Em 15 de maio, Pereira disse nos Estados Unidos ser a favor de uma lei de combate às fake news, pesadelo da extrema-direita. Eis a razão do veto de Bolsonaro a seu nome.

Souza, Rodrigues e Macedo pretendiam explodir o aeroporto de Brasília – Imagem: Alessandro Dantas/PT no Senado, Redes sociais e Jefferson Rudy/Ag. Senado

O enrosco à vista levou simpatizantes comuns do ex-presidente a tentar até o impossível para salvar o “mito”. Em 20 de março, um advogado, Djalma Lacerda, ingressou no Supremo com um pedido de habeas corpus preventivo para o ex-presidente não ser preso durante as investigações da tentativa de golpe. Pelo que se sabe em Brasília, é improvável o capitão ir em cana antes de uma eventual condenação. Lacerda não conseguiu o que queria, em julgamento concluído no dia 17. O caso serviu para deixar no ar dúvidas acerca do comportamento do primeiro indicado de Bolsonaro ao Supremo, ­Kássio Nunes Marques, relator do pedido de habeas corpus, que já o havia negado em março. Na terça-feira 21, Nunes Marques foi voto decisivo para extinguir a pena por corrupção aplicada em 2017 ao petista José Dirceu por Sergio Moro na Operação Lava Jato.

Em um seminário sobre inteligência artificial na quarta-feira 22 no TSE, Alexandre de Moraes, de despedida da Corte, comentou: “Todos se recordam que bastava um cabo e um soldado para fechar o STF (…) O cabo, o soldado, o coronel estão todos presos e o STF está aberto e funcionando”. Trata-se de uma alusão, irônica, à famosa bravata de Eduardo Bolsonaro, filho do capitão, na eleição de 2018, segundo a qual bastavam um cabo e um soldado para fechar o Supremo.

Como diria Galvão Bueno, a coisa já esteve melhor para Bolsonaro. “Vai se criando um clima terrível”, emendaria o locutor. •

Publicado na edição n° 1312 de CartaCapital, em 29 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A hora da verdade’

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