CartaCapital

A história do relógio mágico

Faz muito tempo que o meu trabalho em ‘CartaCapital’ flui como recomenda o relógio do meu avô Luigi

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Mal acordo e encontro minha bisavó Chiara. Está de perfil, pendurada na parede. Moça atraente, mas não me olha. Dizia a neta, Bruna: “Perfil grego”. A minha tia era doutora em literatura helênica e sua tese de formatura já estava publicada com o título Ensaio Teocriteu, a encarar com admiração o poeta Teócrito. Bruna tornou-se uma senhora muito culta e ela também praticou o jornalismo.

Logo adiante dou com meu avô materno, Luigi Becherucci, portador do relógio que ilustra esta página e origem da opção jornalística de muitos Carta. Aos 15 anos, fugira de casa porque a mãe, viúva, se casara novamente. Levava uma lamparina que hoje decora a mesinha da minha sala e logo tornou-se jornalista. Ainda muito jovem dirigiu um jornal provinciano chamado Il Telegrafo, de Livorno. Dali seguiu para Gênova, onde dirigiu outro jornal chamado Caffaro e foi perseguido pelo fascismo, até ser obrigado a abandonar aquela direção. Fascistas saídos, quem sabe, do filme Novecento, de Bertolucci, pretendiam obrigá-lo a tomar óleo de rícino, severíssima punição destinada aos inimigos. Luigi andava de revólver de cano curto no bolso e jamais tomou o purgante avassalador. Foi Luigi quem conduziu meu pai, formado em Direito, para sua primeira redação, ao vaticinar uma vida difícil como advogado. Quanto ao relógio, servia para desenhar uma vírgula reluzente por sobre o colete e, numa escrita em latim na tampa, manifestava a certeza de que nunca valeria esquecer as horas assinaladas no seu mostrador.

O SUÍÇO DE OURO, DE INÍCIO, SAIU DA ALGIBEIRA DO AVÔ LUIGI BECHERUCCI PARA ENCAMINHAR AO JORNALISMO OS CARTA SEGUINTES

Luigi morreu aos 56 anos de pneumonia, em 1929, quando os antibióticos do doutor Fleming ainda não haviam chegado às farmácias. E o relógio foi entregue ao meu pai, Giannino, como um talismã. Estabelecia-se a Ordem do Relógio. Sobrou para mim quando meu pai se foi. Previa-se que algum dia seria entregue ao meu filho, que também se foi aos 56, repórter internacional de longo curso, correspondente de guerra e entrevistador de personalidades, além de autor de quatro livros, a começar por um ensaio sobre o “novo jornalismo” americano, a provar que na Europa a prática da boa escrita sempre havia existido.

Quero também contar aqui o quanto minha filha Manuela foi importante para a vida de CartaCapital, com a preciosíssima colaboração de Mara Lúcia da Silva, minha secretária faz 40 anos. Aproveito então esta oportunidade para entregar o relógio sagrado à minha filha, enquanto, com extremo carinho, abraço a minha Mara. O suíço relampejante é um elo familiar que celebra sem sobressaltos uma continuidade impávida, como foi Luigi ao caminhar nos mais escuros becos genoveses. É graças ao trabalho de Manuela, sempre secundada por Mara, que CartaCapital continua a ser ela mesma.

Manuela e Mara, a dupla superdinâmica

Bastante peculiar, e nem por isso malograda, a estrutura física e moral desta publicação. O redator-chefe, Sergio Lirio, trabalha de Lisboa, onde se abrigou, ao encabeçar a família, para fugir do Brasil bolsonarista, acompanhado pela minha inveja. Sergio tem um papel determinante na revista, não somente em função do cargo, mas também pela dedicação e pelo talento mostrados desde quando aportou à redação de CartaCapital recém-lançada.

Outro profissional que está conosco desde o alvorecer da publicação é Rodrigo Martins, que, dentro desta estrutura forçada pela pandemia, trabalha de casa e jamais fez pesar a sua ausência. Sem falar do infatigável Carlos Drummond, meu companheiro desde os tempos remotos de IstoÉ.

Ainda anterior, de primazia absoluta, meu companheiro de aventura Luiz Gonzaga Belluzzo. A entrada dele em cena remonta a 1968, quando integrava a equipe de economistas que supervisionavam a cobertura da revista Veja nesta específica matéria. Desde a fundação da IstoÉ, tornou-se meu parceiro em mais esta aventura. Juntos estamos até hoje e eu cheguei ao ponto de transformá-lo em personagem no meu primeiro livro com o nome fantasia Professor Verdone, motivado a tanto pela avassaladora paixão por ele nutrida pelo Palmeiras.

Faz muito tempo, de todo modo, que o meu trabalho aqui flui como recomenda o relógio do meu avô Luigi. E são inúmeros os fatores benéficos de uma longa jornada que, ao cabo, a despeito de todas as dificuldades e vicissitudes inevitáveis para o jornalismo honesto, oferece a oportunidade de curtir a certeza de uma contribuição importante para o correto entendimento do Brasil atual.

Meu pai abria seu relógio de estimação com o gesto que o tempo tornara tradicional e, em lugar de pronunciar a hora, comentava a situação nos seus mais diversos aspectos. Acho que CartaCapital não tem razão alguma para esquecer as peripécias de sua vida, pelo contrário, todos os momentos que a redação viveu, e incluo aqui também o nosso site, sintonizado à perfeição à linha definida em papel impresso, prestam-se a ser recordados com a mente e o coração.

No seu prestigioso site, Luis Nassif escreveu um texto dedicado ao meu desempenho como jornalista e partiu para elogios que me comovem, sinceramente, até os precórdios. Nassif é uma figura solar que, ao surgir em qualquer circunstância, sempre despertou os meus melhores sentimentos, a começar por uma noite de debates no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, quando ainda muito jovem invectivou contra um Mesquita que da plateia tentava demolir os argumentos por mim apresentados, como moderador, no centro da mesa colocada sobre o palco.

Fomos então jantar maminha grelhada. Pessoas saídas da noitada teatral entraram no restaurante e até me pareceu que a Fonte de Trevi acabava de chegar.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1189 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: WANEZZA SOARES E FÁBIO PANDA

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