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A culpa é de quem?

Passou da hora de apontar as responsabilidades de quem nega as mudanças climáticas e contribui para a devastação dos biomas brasileiros

A culpa é de quem?
A culpa é de quem?
As tempestades no Rio Grande do Sul afetaram 1,4 milhão de habitantes e deixaram mais de 80 mil desabrigados. Angustiada com a catástrofe, a população brasileira parece finalmente estar vacinada contra o expediente dos políticos de jogar a culpa do caos climático à própria natureza, revela pesquisa Quaest – Imagem: Nelson Almeida/AFP e César Lopes/Prefeitura de Porto Alegre
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“Não é hora de procurar culpados”, sugere o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, apontado por 68% dos brasileiros entrevistados pela Genial/Quaest como o principal responsável pela tragédia climática e humanitária que há duas semanas vitima o povo gaúcho. O resultado da pesquisa, na qual a prefeitura de Porto Alegre (64%) e o governo federal (59%) completam o pódio, revela que já não cola na população o expediente de jogar a culpa pelo caos climático na própria natureza, em governos passados ou na histórica ocupação desordenada do território. Apesar do pedido de Leite, o desastre, que até o fechamento desta edição contabilizava 149 mortos e 108 desaparecidos, é um momento oportuno para que o Brasil reflita sobre como o Poder Público deve assumir suas responsabilidades no enfrentamento ao aquecimento global. É também momento de reconhecer os principais agentes de um processo de retrocesso ambiental em curso no País, que colocará cada vez mais vidas em situação de risco num cenário que tem o Congresso Nacional como principal vilão, mas no qual vários governantes e empresas insistem em negar a questão climática.

Articulador da Coalizão Pelo Clima, Pedro Aranha inclui o Executivo, o Parlamento e a máquina de desinformação nas redes sociais como o tripé que sustenta o retrocesso ambiental no País. Ele afirma que o maior culpado pela tragédia no Rio Grande do Sul é o orçamento público para o enfrentamento das mudanças climáticas: “Enquanto os governos insistirem em não trazer a dimensão ecológica para o desenvolvimento, eles serão responsáveis pelas tragédias provocadas pela crise climática”. Os deputados e senadores são apontados como “gestores políticos do crime climático” pelo ambientalista. “Esse novo pacote legislativo de desmonte da política ambiental brasileira é um escárnio com as estratégias de sobrevivência do século XXI”, avalia. Já as redes bolsonaristas e as empresas Big Techs são definidas por Aranha como “as mentoras do analfabetismo climático e da desinformação ambiental”.

A tragédia gaúcha não comoveu a bancada ruralista, que mantém a ofensiva contra as leis de proteção ambiental

Com a comoção causada em todo o Brasil pela calamidade gaúcha, ambientalistas veem uma oportunidade de mobilizar a opinião pública para frear em Brasília o ímpeto da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), cujos integrantes estão por trás de inúmeros projetos que fragilizam a legislação ambiental. “Boa parte dos congressistas nega ou minimiza as mudanças climáticas. Há vários parlamentares herdeiros do governo Bolsonaro que já eram negacionistas e continuam sendo”, diz Márcio Astrini, coordenador-executivo do Observatório do Clima. O País, acrescenta o ambientalista, vive “um desafio absolutamente novo” no que diz respeito ao clima e precisa de deputados e senadores que entreguem soluções em vez de patrocinar atrasos: “Essas pessoas aí, já passou o tempo delas de ocupar cadeiras públicas com esse grau de importância. Esses parlamentares só vão entregar problemas. Com eles lá, temos a certeza de que continuarão a semear desastres tais como o que está acontecendo no Sul”.

Algumas das “pessoas” mencionadas por Astrini são figuras carimbadas do bolsonarismo e têm seus nomes incluídos pelo Observatório do Clima no relatório que mostra o “Novo Pacote da Destruição” pautado no Congresso este ano, com 25 Projetos de Lei e três Propostas de Emenda à Constituição que, uma vez aprovados, “causarão danos irreversíveis aos ecossistemas brasileiros, aos povos tradicionais, ao clima global e à segurança de cada cidadão”. Na Câmara, embora não seja afeito a elaborar projetos, um dos maiores articuladores da bancada antiambiental é o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, do PL. Em seus discursos, o mentor do plano de “passar a boiada” na legislação ambiental brasileira tem defendido, entre outras coisas, a exploração da Amazônia e a flexibilização do licenciamento ambiental para grandes empreendimentos. No Senado, o papel de liderança é exercido pela ex-ministra da Agricultura, Tereza Cristina, do PP, relatora do PL 2159/2021, que trata da Lei Geral do Licenciamento Ambiental e, segundo os autores do documento, “torna o licenciamento uma exceção, em vez de uma regra” no País.

Ricardo Salles, Tereza Cristina, Pedro Lupion, Márcio Bittar, Luís Carlos Heinze e Lucas Redecker lideram os boiadeiros do Congresso – Imagem: Edilson Rodrigues/Ag. Câmara, Vini Loures/Ag. Câmara, Roque de Sá/Ag. Senado, Zeca Ribeiro/Ag. Câmara, Marcos Oliveira/Ag. Senado e Pablo Valadares/Ag. Câmara

Outros nomes se destacam na vanguarda do atraso. Presidente da FPA, o deputado Pedro Lupion, do PP, é o relator na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do PL 5028/2023, que propõe submeter a criação de novas Unidades de Conservação ao pagamento prévio de indenizações, que, na prática, inviabilizarão novas áreas protegidas. Outros projetos chamam atenção pela ousadia, como o PL 3334/2023, relatado na CCJ do Senado pelo senador Márcio Bittar, do União Brasil, que permite a redução de 80% para 50% das áreas de reserva legal na Amazônia. Parlamentares gaúchos também fazem parte do pacote, caso do deputado Lucas Redecker, do PSDB, relator do PL 364/2019, que elimina a proteção de campos nativos e outras formações não florestais no País, deixando desprotegida uma vasta área de 48 milhões de hectares, equivalente às extensões somadas do Rio Grande do Sul e do Paraná. Ou ainda do senador Luis Carlos Heinze, do PP, autor do PL 2168/2021, que permite a derrubada de vegetação nativa para projetos de irrigação dentro de Áreas de Proteção Permanente (APPs).

Para o deputado Nilto Tatto, do PT, os parlamentares “não têm o direito de negar as consequências das emergências climáticas diante de uma tragédia que poderia ter sido mitigada”. Ele cita um exemplo: “Um projeto de um deputado gaúcho foi aprovado recentemente na Câmara e está no Senado, reduzindo a proteção de áreas não florestais como se elas não desempenhassem um papel importante na absorção e produção de água”. No Rio Grande do Sul, lembra Tatto, os Pampas, que representam mais de 60% do território, é uma área não florestal que passaria a ficar desprotegida com a aprovação da proposta: “Dá para imaginar como será se, no futuro, o Rio Grande do Sul for acometido por grandes precipitações como este ano, com seu território degradado e sem capacidade de absorver ou escoar a água”. Para o petista, os parlamentares que negam as emergências climáticas, barram projetos de preservação e recuperação socioambiental e votam e aprovam projetos de destruição “são, mais do que responsáveis, promotores de tragédias como esta”.

O Observatório do Clima aponta 28 propostas legislativas que podem causar “danos irreversíveis aos ecossistemas”

Ex-secretário de Meio Ambiente e de Planejamento Urbano de Pelotas e ex-coordenador do programa Mar de Dentro, voltado ao planejamento, gestão e articulação ambiental, social e econômica em toda a região hidrográfica da Lagoa dos Patos, o professor Antônio Soler afirma que no estado está em curso um processo de 20 anos de desmonte da legislação ambiental e de qualquer estrutura pública que possa pensar uma política de proteção ao meio ambiente: “No Rio Grande do Sul, a boiada segue passando. Passou, por exemplo, quando o governo estadual desmontou uma série de institutos e estruturas públicas que tratavam da questão ambiental. Ou quando diminuiu a democracia ambiental dentro do Conselho Estadual do Meio Ambiente, que está dominado por setores do capital ligados ao agro e à especulação imobiliária. O ápice foi a destruição do Código Estadual de Meio Ambiente, o maior retrocesso ambiental da história do estado”, enumera Soler, que é membro do Centro de Estudos Ambientais (CEA) e do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).

Representante do Fórum Brasileiro de ONGs do Meio Ambiente (FBOMS) no comitê de enfrentamento à crise no Rio Grande do Sul organizado pela sociedade civil, André Costa afirma que a política ambiental é uma pauta que vem sendo negligenciada há muito tempo pelos governos e gestores ambientais gaúchos: “Recentemente, o governo aprovou uma série de regras flexibilizando normas ambientais para a construção de barragens em APPs. Não bastasse isso, há uma redução sistemática de investimentos financeiros, seja na política de proteção e sustentabilidade, seja nas ações preventivas de enfrentamento aos desastres naturais”. O ambientalista ressalta que, somente na última década, o governo gaúcho investiu dinheiro público em ações que jamais saíram do papel, como um Plano de Prevenção de Desastres elaborado em 2017, um Plano de Zoneamento Ecológico-Econômico concluído em 2019 e o Sistema Estadual de Recursos Hídricos previsto na Constituição Estadual.

Gustavo Gayer e Nikolas Ferreira não se constrangem em disseminar fake news em meio ao drama gaúcho. As redes sociais continuam oferecendo palco para mentirosos contumazes, lamenta Astrini – Imagem: Redes sociais e Vini Loures/Ag. Câmara

A calamidade no Rio Grande do Sul mostrou também que a disseminação de notícias falsas ou negacionistas pode ser responsável pelo agravamento das tragédias ambientais. Aqui, mais uma vez os deputados de sempre tiveram destaque, sobretudo a bancada do PL. Eduardo Bolsonaro postou que Lula só tomou medidas “quatro dias após a tragédia”. ­Nikolas Ferreira espalhou a notícia de que o Ministério da Saúde estaria dificultando a distribuição de remédios às vítimas. Gustavo Gayer “denunciou” que o governo federal estaria impedindo médicos de atender a população desabrigada. Na segunda-feira 13, a bancada do PSOL na Câmara fez uma representação contra cinco deputados do PL e dois do União Brasil acusados de disseminar ou criar fake news sobre a tragédia. São eles: Caroline de Toni, Coronel Assis, Coronel Ulysses, Filipe Martins, General Girão, Gilvan da Federal e Paulo Bilynskyj.

“A desinformação é uma estratégia da extrema-direita nas redes também na questão ambiental”, afirma o advogado Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo e colunista de CartaCapital. Trata-se de uma questão muito difícil, mas que a sociedade precisa debater, avalia o jurista: “A essência desse debate é como regular as redes sociais. Precisamos estabelecer limites mínimos de conduta social civilizada nesse ambiente, mas sem permitir a censura”.

Serrano afirma haver a necessidade de uma atuação mais intensa do Ministério Público em ações civis públicas, ou mesmo de improbidade, para impedir atrasos na legislação ambiental: “Ações civis pleiteando a produção de políticas públicas ambientais adequadas e combatendo as políticas ambientais muito frouxas e inadequadas à preservação do meio ambiente e que propiciem tragédias como esta. Tem de haver uma conduta mais firme porque há legislação no Brasil, e ações judiciais próprias no País também existem”.

As big techs são coniventes com o negacionismo climático que grassa na web

Tatto avalia que a desinformação tem sido uma “arma muito poderosa, utilizada especialmente pela extrema-direita” para fins políticos e interesses econômicos, inclusive na área ambiental: “Não é uma arma nova, porque sempre houve o uso da desinformação para promover o desmatamento, a invasão de terras indígenas e outras pautas destrutivas. Hoje, a ferramenta ganhou, porém, nova feição: está mais requintada, é direcionada, viaja com mais velocidade e capilaridade entre a população”. O deputado defende ainda que se aperte o cerco às Big Techs: “Eu não posso crer que, diante dos avanços tecnológicos que caracterizam o período em que vivemos, essas grandes empresas do setor não tenham ­capacidade de desenvolver mecanismos de regulação e controle de notícias falsas”.

Para Astrini, as Big Techs “atrasam soluções ambientais ao dar maior espaço a quem nega a ciência, a realidade, o clima, a vacina, enfim, a quem nega tudo”. Ele diz que a regulação das redes sociais no Brasil é fundamental: “A cada dia que passa e se continua a propiciar esse palco gigantesco para que pessoas sem responsabilidade nenhuma falem coisas absolutamente mentirosas, se atrasa o resgate das pessoas, se desestimulam as doações e se faz com que parte da opinião pública acredite em teorias da conspiração que levam a população a diminuir o auxílio e a solidariedade”.

O dirigente do Observatório do Clima faz um paralelo entre a tragédia no Rio Grande do Sul e a pandemia de ­Covid: “Vimos o resultado, com centenas de milhares de pessoas mortas e muitas vidas que poderiam ter sido salvas se todo aquele horror contra a vacina e contra as medidas de precaução não tivesse sido amplamente difundido. A mesma coisa acontece com a crise do clima. Se continuarmos a disseminar notícias falsas, não vamos aprender a combater o problema, só vamos ver o número de vítimas aumentar. A desinformação ambiental é um perigo, um risco à vida”. •


A NATUREZA COBRA

Remediar os danos é muito mais caro do que atuar na prevenção

Lula anunciou um bilionário pacote para socorrer o estado – Imagem: José Cruz/ABR

A presidente do Banco dos BRICS, Dilma Rousseff, anunciou na terça-feira 14 que a instituição destinará 1,15 bilhão de dólares ao financiamento de obras para a reconstrução da infraestrutura urbana e rural no Rio Grande do Sul. O apoio vem se somar ao pacote de ajuda ao estado, que conta também com a promessa de envio de 746 milhões de dólares pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe (CAF), destinados a ações de mitigação dos efeitos das inundações.

Na segunda-feira 12, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, confirmou que o governo suspenderá por três anos a dívida do estado com a União, o que representa uma economia de 11 bilhões de reais aos cofres gaúchos. Além disso, também foram zerados os juros da dívida, que custariam ao governo estadual outros 12 bilhões de reais no período.

No dia seguinte, o presidente Lula anunciou a criação do Ministério Extraordinário de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, que será comandado pelo ministro petista Paulo Pimenta, atualmente à frente da Secretaria de Comunicação do governo. Com a expectativa inicial de seis meses de existência, a pasta provisória coordenará os esforços do governo federal para a superação da tragédia climática no estado.

Publicado na edição n° 1311 de CartaCapital, em 22 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A culpa é de quem?’

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