Justiça

Um conto de Natal

Nas últimas audiências do ano, deparei-me com um caso que é uma lição para quem celebra os dias de Natal

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Era 17 de dezembro de alguns anos passados. O recesso, ansiosamente esperado por todos/as aqueles/as que trabalham no sistema de justiça, começaria em breve. Naqueles últimos dias do último mês do ano, as ruas estavam cheias; os shoppings, lotados, as pessoas, sem paciência, o trânsito, infernal; o calor, insuportável. Nada diferente dos anos anteriores.

O expediente, que precisaria ter mais de 24 horas para caber tudo que não podia esperar, era curto diante de tantas demandas, o que incluía apreciações de liminares, mandados de segurança, definições de guarda e visitação para que crianças e adolescentes não enfrentassem a disputa de seus (ir)responsáveis no período de festas e, principalmente, processos envolvendo réus presos, cuja tramitação é prioritária.

Iniciada uma das últimas audiências antes do período festivo, o réu entrou algemado, cabeça baixa, vestindo camisa branca e calça bege, calçando chinelos, acompanhado de escolta policial, cumprindo o ritual que lhe cabia até o momento de ser interrogado.

O caso era cristalino e nada desafiador. Um flagrante de tráfico de drogas, sem possibilidade de qualquer falsa imputação. O réu, por sua vez, admitia a culpa, ressalvando apenas que não estava traficando onde fora preso, nas imediações de uma escola. Ao contrário, seu ponto era na rua principal do bairro, poucas quadras depois do lugar dedicado ao ensino a que nunca teve acesso. Estava a caminho da esquina onde fixara seu ganha-pão quando fora abordado.

Seu modus operandi previa ir de casa para o “trabalho” sempre de mototáxi, a fim de evitar qualquer revista pessoal, mas, naquele dia, estava sem dinheiro para pagar a passagem e seguiu a pé. No caminho, deu-se a aproximação policial da qual não se esquivara, aceitando integralmente o desenrolar dos acontecimentos que o levariam à prisão preventiva.

Diante dos fatos irrefutáveis e da postura daquele homem, que não apresentava o menor traço de irresignação, fui compelida a esclarecê-lo de que não havia outra possibilidade diferente da condenação. Poderia considerar ou não a proximidade da escola, uma causa de aumento da pena de acordo com a Lei, mas não era hipótese de absolvição. Além disso, havia uma condenação anterior pelo mesmo crime. O réu era reincidente, o que piorava a situação e determinava o regime inicialmente fechado.

O homem, alto, forte, embora não tivesse traços típicos de uma pessoa branca, tinha a pele clara, cabelos pretos cortados bem curtos e não dava sinais de ira ou revolta, apesar de revelar nos olhos escuros uma profunda tristeza. Ele apenas ouvia toda a minha explicação de forma tão conformada que causava perplexidade. E eu, preparada para enfrentar todo tipo de tormenta, como era esperado naqueles dias em que quase já se podia ouvir os fogos de artifício, estava incomodada com a falta de incômodo daquele réu.

Ao final, cumpridas as formalidades legais, perguntei, como de costume – talvez pelo hábito professoral – se havia alguma dúvida, na esperança de ouvir que tudo fora armado e que ele era inocente, como é comum nessas situações. Assim, eu poderia me irritar com motivos, já que a provas eram incontestes. Como ele poderia ter a ousadia de negar os fatos devidamente comprovados? Mas não. O homem não tinha dúvidas quanto ao seu destino, apenas um pedido.

Disse que já fora preso pelo mesmo crime, cumpriu sua pena e estava em dia com a justiça. Tentou reconstruir a vida ao lado de sua família, retornar ao mercado de trabalho e abandonar o passado. Mas a marca de “egresso do sistema prisional” não lhe facilitava a vida.

Embora batesse em muitas portas, conseguindo vez ou outra “defender algum” através de “bicos”, fato é que não encontrou meio digno de manter a si e a sua família. Tinha a esposa grávida e um filho de cinco anos passando necessidades. Todos conheciam a fome. Ainda assim, não queria bater novamente na única porta que sempre esteve aberta: a do tráfico de drogas.

Um dia, por falta de pagamento, cortaram a energia elétrica da casa de dois cômodos em que viviam. E nesse dia, diante da fome da alma e da escuridão da estrada, que não lhe permitia enxergar qualquer outro caminho, sucumbiu.

Não tardou a ser preso. Agora, aceitava pacificamente a condenação como consequência de seus atos, sem se eximir de qualquer responsabilidade. No entanto, a prisão antecipou o parto da esposa e fez nascer de oito meses o filho caçula, que não tivera a oportunidade de conhecer. Seu pedido era só esse. A mulher não teve condições de ir visitá-lo desde que fora preso e estava do lado de fora da sala de audiência, acompanhada do menino mais velho e com o caçula de 15 dias, na esperança de que a juíza autorizasse que a mãe apresentasse o mais novo ao pai, que, diante de mim, rogava pudesse olhar para o filho de poucos dias pela primeira vez. Era outro homem, tomado pela emoção.

Consultei a escolta policial e observando os cuidados necessários, consenti que o pai pudesse pousar os olhos sobre o menino recém-nascido, de forma breve, no salão do júri, um espaço mais reservado e menos exposto a quem passava pelos corredores, ordem imediatamente cumprida pelos policiais, que pareciam torcer por isso e o retiraram rapidamente da sala de audiência. Muitos outros réus ainda aguardavam a oportunidade de me contar suas versões para o que estava nos autos, dando vida ao papel. Certamente, nem todos o fariam com a mesma intensidade.

Sob o impacto daquela narrativa, procurei alguma coisa para levar ao menino mais velho, que eu havia notado quando ingressei no Fórum. Estava sentado em um banco, no corredor que levava até a minha sala, ao lado de uma mulher, que supus ser sua mãe e que trazia um bebê nos braços. Agarrava-se a ela e parecia assustado. Imaginei que estivessem ali aguardando alguma audiência de infância ou família, possivelmente na vara ao lado.

O fato de ter exposto aquele menino tão pequeno a ver seu pai passando pelo corredor algemado me feriu profundamente. Eu havia feito aquilo com uma criança, ainda que sem saber. Procurei um doce, uma bala ou algo assim que pudesse levar a ele na vã tentativa de abreviar o trauma daquela situação ou, talvez, amenizar a minha própria culpa. Havia um bolo de fubá em cima da mesa do café. Cortei uma fatia e segui na direção daquela inusitada reunião de família.

Lá chegando, pude ver o homem com o pequeno de quinze dias nos braços. Tinha o rosto banhado de lágrimas, que o distanciavam da condição de réu e o aproximavam da imagem de um pai de família. Na expressão da esposa, dor e desespero ante a certeza de que não teria mais com quem contar para o sustento dela e de seus filhos. Nos olhos do mais velho, a mais absoluta incompreensão no meio de um choro profundamente sentido. Alheio a tudo, o recém-nascido dormia tranquilo sob o olhar do Cristo, cuja imagem pode ser vista no crucifixo que adorna todos os salões de júri do Brasil, lembrando-nos da mais injusta condenação.

Naquela imagem composta pelo bebê dormindo inocente nos braços do pai condenado e sob os olhos da mãe em desalento, cercado por três policiais que não escondiam a emoção diante da cena, e acompanhado pela vigília do irmão mais velho, vi Jesus menino na manjedoura e um presépio formado por personagens do cotidiano.

Segundo a Bíblia, ao se dirigir a uma suposta pecadora perseguida por algozes, Jesus teria dito aos que queriam agredi-la: “Atire a primeira pedra aquele que não tiver pecados”. E para a mulher, depois de constatar a desistência de todos, apenas disse: “Eu também não a condeno. Agora vá e não tornes a pecar”. Mas ele era diferenciado; eu sou apenas uma juíza que cumpre a lei e tem lá os seus erros e acertos, como qualquer ser humano.

Por isso, tal como manda a lei, condenei aquele homem a alguns anos de prisão em regime fechado. Conhecer as suas razões não me autorizava a agir como Jesus e deixar de condená-lo. Mas conhecer a sua história me obriga a trabalhar todos os dias para evitar que a história se repita. Esse é o desafio de todos/as nós que integramos o sistema de justiça: construir uma sociedade livre, justa e solidária, onde todas as pessoas tenham direito a um Feliz Natal!

Boas Festas!

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