Manuela Hermes de Lima

Juíza do Trabalho -TRT5 (Bahia) e mestre em Direito Público.

Opinião

Não, não estou lhe servindo! Rompendo o estereótipo da mulher negra como subalterna

Neste mês da Consciência Negra, é preciso celebrar o legado de mulheres negras.

Estudantes de uma escola municipal de Caxias do Sul (RS) pintam uma imagem da Yalorixá Mãe Stella de Oxóssi, como parte das atividades do Dia da Consciência Negra, em 2022. Foto: Silvio Avila/AFP
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“Não, eu não estou lhe servindo”, respondi, indignada, a um homem branco que ensaiou tomar das minhas mãos prato e talher, enquanto me servia, no restaurante de um hotel localizado no Jardins em São Paulo, considerado uma das áreas mais valorizadas da capital paulistana.

Na mesma manhã de sábado, outra mulher negra, num programa televisivo em rede aberta, foi convidada a servir as convidadas da atração nacional. Enquanto esse fato era acompanhado por milhares de pessoas, ganhando proporção nas redes sociais, experimentava, anonimamente, mais um episódio de racismo, como inúmeras mulheres negras que, diuturnamente, se defrontam com racismo e sexismo no país.

É que para branquitude, simbolicamente representada naquele homem branco, autocentrado e supostamente visto como sujeito universal, soa inadmissível que uma mulher negra circule por espaços que, antes, lhe era reservado apenas para servir a determinado grupo, então detentor de privilégios.

A mulher negra tem sido historicamente associada a estereótipos de subalternidade, sua imagem atribuída à servidão e ao serviço e fortemente impactada, no curso dos anos, pela desigualdade social e econômica.

Nos esclarecimentos prévios de uma Carta-denúncia, Lélia Gonzalez, já chamava atenção para o fato de que a mulher negra constitui “o setor mais oprimido e explorado da sociedade brasileira” (Mulher Negra. Lélia Gonzalez, Por Um feminismo Afrolatino Americano, p. 109).

O retrato da atualidade escancara que a condição da mulher negra permanece inalterada, com ameaça concreta de agravamento ante ao não cumprimento pelos poderes competentes de políticas de públicas que a priorizem.

O racismo que engendra a sociedade, suas sutilezas, e que se desdobra com suas redes e garras infindáveis, conformando relações e instituições, constitui a força de deslocamento de mulheres negras para a subalternidade, a partir de suas múltiplas agressões, comprometendo a médio e longo prazo, a saúde dessas mulheres, seja física, emocional ou mental.

Nesse sentido, bell hooks, analisando as múltiplas opressões que alcançam as mulheres negras, sustentava que “a dominação patriarcal conforma relações de poder nas esferas pessoal, interpessoal e íntimas, repousando o patriarcado em bases semelhantes as que permitem a existência do racismo construída a partir de uma crença de dominação entre grupos étnicos supostamente inferiores e superiores”.

Ser mulher no Brasil é desafio diário e, ser uma mulher negra, aumenta consideravelmente as probabilidades de que sejamos alvos de violência de gênero e raça em razão da subvalorização a que somos relegadas.

A mulher negra constitui atualmente 28,3% da força de trabalho no país, no entanto, figura com maior índice de desemprego e informalidade.

Colecionamos casos de mulheres negras laborando nas piores condições, inclusive trabalho doméstico infantil, projetando tais mulheres para camadas consideradas as mais baixas na sociedade, com menor renda (60% do rendimento de mulheres brancas e menos da metade da renda de homens brancos, conforme base de microdados da PNADC/IBGE em 2022) e que tem empurrado mulheres negras ao trabalho precarizado, inclusive ao análogo à escravidão.

Como resquício de uma sociedade forjada a partir da escravização e da exploração da mão de obra negra, é a mulher negra que mais sofre violência física (20% negras e 14% brancas) e psicológica (31% negras e 22% brancas), segundo dados obtidos no Instituto Patrícia Galvão. Ainda não conseguimos atenuar o efeito intergeracional do trabalho doméstico que arrasta meninas e jovens negras ao regime de exploração a que são dolosamente submetidas, numa existência destinada a servir com a falácia do “quase da família”.

Reconhecidamente beneficiada pelo legado de todas as mulheres negras que me precederam, honro e celebro as nossas ancestrais que resistiram com o alto preço de suas existências.

Neste novembro negro, mês dedicado a reconhecer a luta, resistência do povo negro e enaltecer a nossa cultura, temos na força ancestral de Aqualtune, Sabina, Dandara e de cada mulher negra que tem resistido ao sistema de opressão capitalista que a vulnerabiliza, na que viabiliza redes e executa projetos que transformam vidas e as que, ainda em diminuto percentual, transitam em cargos institucionais, a força revolucionária e o pilar transformador deste país.

Nós, mulheres negras, não mais aceitaremos ou nos submeteremos ao lugar de inferioridade, de subalternização, que insistiram no curso dos anos em nos posicionar; para cada para “pensei que você estivesse me servindo”, ecoando a voz de muitas, responderei, altiva: Não mais lhe serviremos! Acostumem-se a nos ver em todos os lugares e espaços, pois, como conclama Angela Davis, “o desafio do século XXI é desmantelar as estruturas nas quais o racismo continua a ser firmado”.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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