Rosilene Nascimento

Juíza do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Campinas). Mestre em Direito pela UFMG.

Opinião

Discriminação racial indireta no ambiente de trabalho

Discriminações sutis e processos silenciosos de exclusões precisam ser evidenciados

Foto da Ável Investimentos, escritório ligado à XP, levantou debate nas redes sociais pela ausência de pessoas negras.
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Um dia a raposa convidou a cegonha para jantar. Querendo pregar uma peça na outra, serviu sopa num prato raso. Claro que a raposa tomou toda a sua sopa sem o menor problema, mas a pobre cegonha, com seu bico comprido, mal pôde tomar uma gota. O resultado foi que a cegonha voltou para casa morrendo de fome.

O trecho dessa fábula de Esopo ilustra bem a ideia de que não são aceitáveis critérios que forneçam igualdade de oportunidades meramente formal, revelando-se discriminatórios na sua operação.

Desde a Revolução Francesa, a igualdade é princípio essencial aos regimes republicanos e democráticos. Mas ponderemos: O princípio da igualdade efetiva-se apenas com o combate às condutas expressamente discriminatórias?

Nas relações de trabalho, em razão da desigualdade dos contratantes e da ampla pessoalidade envolvida, o ambiente é propício à projeção de sentimentos e práticas presentes no meio social, tais como o racismo. Todavia, na Justiça do Trabalho é comum a alegação de situações de discriminação racial expressa, enquanto as situações de discriminação velada são de mais difícil identificação e tratamento.

Isso ocorre porque o tratamento discriminatório é mais facilmente comprovável que o impacto discriminatório.

Por exemplo, é mais fácil para o trabalhador provar o dano moral fundado em expressões racistas no ambiente de trabalho do que o fato de ter sido rejeitado em um processo seletivo em razão de sua raça. No processo seletivo com impacto discriminatório não há intenção visível, mas a utilização de medidas aparentemente neutras no critério racial que geram, porém, discriminação dos negros no acesso ao emprego e promoção funcional.

O Direito Americano desenvolveu a Teoria do Impacto Desproporcional, que trata da discriminação indireta, aquela que não decorre de atos específicos e manifestação expressa, mas que se revela, no Brasil, a mais perniciosa e injusta no mercado de trabalho e nem sempre é praticada por indivíduos contra indivíduos, podendo ser uma discriminação institucional e estrutural, sutil e devastadora para todo um grupo social a longo prazo, desafiando, inclusive, ações coletivas.

Note-se que não estamos tratando das qualificações funcionais de boa-fé, que são exigências lícitas para um referido cargo ou atividade, como no clássico exemplo mencionado por Paulo Jakutis em seu manual de estudo da discriminação no trabalho, da exigência de um restaurante francês de contratação de um cozinheiro de origem específica da França. Trata-se aqui de critérios justos em sua forma, mas que contêm barreiras invisíveis, arbitrárias e desnecessárias, que operam injustamente no sentido da discriminação racial ou outra inadmissível.

Definiu a Suprema Corte norte-americana em suas decisões sobre o assunto:

“Pleitos de disparate treatment podem ser distintos de pleitos que enfatizam o disparate impact. O último envolve práticas empregatícias que são facilmente neutras no tratamento dos diferentes grupos mas que de fato incidem mais duramente sobre um grupo que outro e não podem ser justificadas pelas necessidades do negócio. Comprovação de motivação discriminatória, nós temos decidido, não é requerida sob a teoria do disparate impact” (RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas).

Muitos são os fundamentos legais e principiológicos que permitem o enfrentamento da discriminação indireta. Um dos objetivos fundamentais da república brasileira é o de promover o bem de todos, sem preconceitos e discriminação, conforme o Art. 3º da Constituição de 1988. O rol dos direitos fundamentais do artigo 5º, nos incisos XLI e XLII, pune a prática de discriminação sob quaisquer de suas formas e criminaliza a prática de racismo. No campo dos direitos sociais trabalhistas, o artigo 7º, inciso XXX, contempla o respeito à isonomia e condena a discriminação.

No âmbito infraconstitucional, o Direito brasileiro conta com a Lei 9.029/95, que proíbe genericamente a adoção de práticas discriminatória para efeito de acesso à relação de emprego ou sua manutenção e a Lei 7.716/89, que trata de conduta discriminatória dirigida a determinado grupo ou coletividade. Ainda, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera a proteção contra a discriminação um de seus eixos fundamentais de atuação, nos termos da Convenção 111, sobre discriminação em matéria de emprego e profissão.

Conclui-se, assim, que o conceito de igualdade formal, embora inegável seu valor, não tem forças suficientes para reverter situações de desigualdade. É preciso dimensionar o princípio da igualdade, combatendo tanto as práticas discriminatórias explícitas e intencionais, quanto as condutas que, com roupagem de neutralidade, promovem a discriminação e a exclusão.

Em outras palavras, desde que o jantar é oferecido, que os utensílios sejam acessíveis a todos os que desejam comer.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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