Sofia Lima Dutra

Juíza do Trabalho Substituta do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. Especialista em Economia do Trabalho pela Unicamp. Mestranda em Direito do Trabalho pela Universidade de Lisboa.

Opinião

Breves reflexões sobre o trabalho infantil no contexto dos povos originários no Brasil

Origens históricas do colonialismo refletem na realidade concreta de pessoas indígenas desde a infância

.Foto: Thiago Gomes/Agência Pará
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A história registra que os povos indígenas foram os primeiros habitantes do Brasil. Por isso, para falar em trabalho infantil indígena é necessário estabelecer um elo entre o presente e o passado e resgatar o contexto da chegada dos europeus no território brasileiro e o trato dispensado aos povos que o habitavam originariamente.

O assunto é vasto porque temos mais de 500 anos de história e muitas mazelas, preconceitos e descaso. O nosso objetivo é contribuir com o debate deste importante tema, como fonte de reflexão para que mais pessoas discutam e, juntos, possamos encontrar soluções que proporcionem respeito aos povos indígenas.

Relembrar que a formação do povo brasileiro tem relatos de exploração, violência, abusos sexuais e físicos, escravização e imposição cultural, é salutar para compreensão do quadro atual da situação dos povos originários no século XXI, pois, desde a chegada dos portugueses, os diversos grupos indígenas existentes na região foram obrigados a trabalhar na floresta, como, por exemplo, na extração do pau-brasil e, posteriormente, na produção do açúcar.

Como parte do processo de evangelização realizado pelos jesuítas estava a formação das crianças indígenas para o trabalho, considerando que o aprendizado de um ofício, mesmo que na infância, era visto como fonte de dignificação do ser humano e de salvação do espírito. É desse modo que, no Brasil colônia, a criança indígena teve sua mão de obra explorada nas lavouras e no trabalho doméstico, além de diversas outras atividades econômicas que foram surgindo no decorrer dos séculos.

Esse cenário incipiente da formação do povo brasileiro explica a naturalização e a banalização do trabalho infantil, notadamente da criança indígena.

A inserção de grupos indígenas na comunidade potencializa a exploração do trabalho de suas crianças e adolescentes, dada a fragilidade na integração social do indígena, que não tem a qualificação e o conhecimento dos modos e dos costumes da população não indígena. Como forma de auferir renda, passam a ser explorados nas mais diversas atividades econômicas, tanto no meio rural quanto urbano.

Com isso, deixamos de cumprir um dos principais preceitos constitucionais, que é o da proteção integral da criança e do adolescente, insculpido no artigo 227 da Constituição Federal, ao prescrever que devem ser tratados com absoluta prioridade, sendo-lhes proporcionado, notadamente, educação e saúde.

Recentemente, em visita a Manaus, tivemos a oportunidade de conhecer a tribo indígena Tukana, originária do alto Rio Negro, mas que, diante de privações em seu habitat originário, migra para as margens do rio em busca de trabalho, que consiste na divulgação de sua cultura para turistas, como exibição de danças, de suas vestimentas, de objetos típicos e de sua língua. Promovem, outrossim, a venda de artigos produzidos pelos próprios membros da tribo.

Neste ponto é possível testemunhar o trabalho infantil na aldeia, onde a venda é realizada majoritariamente pelas crianças. As agências de turismo desembarcam grupos interessados em conhecer a cultura, mas também em consumir os produtos que são vendidos tanto por adultos como por crianças.

Convém registrar que os povos indígenas têm abandonado seu local de origem diante do desequilíbrio ambiental causado pelo desmatamento desenfreado, pelos garimpos ilegais, pelas queimadas e o desvalor à vida da população indígena, que tem experimentado verdadeiro genocídio em nosso país.

Por isso, iniciativas como a da comissão que elaborou a prova de redação do ENEM de 2022, que trouxe como tema “Desafios para a valorização da comunidade e povos tradicionais no Brasil”, são salutares para fomentar o debate e o conhecimento da situação da população indígena na atualidade e nos levar a encontrar medidas eficazes na preservação desses povos.

Grupo indígena protesta em frente ao Congresso Nacional. Créditos: EBC

Recebemos com entusiasmo a notícia de que o próximo governo instituirá o Ministério dos Povos Originários, trazendo representatividade e valorização da população indígena. As políticas públicas de divulgação e de preservação da cultura e do modo de vida dos povos originários, além da proteção da criança indígena, são fundamentais para o crescimento do país e da nossa evolução enquanto povo civilizado.

O resgate histórico de como ocorreu a ocupação em nosso território e o reconhecimento da exploração e da devastação dos grupos indígenas é uma necessidade que se impõe, pois, nenhuma transformação nasce do desconhecimento e da falta de constatação de que devemos esse resgate aos povos indígenas, sobretudo porque somos descendentes daqueles europeus que se locupletaram da cultura e do trabalho indígena para conquistar e se firmar no território brasileiro.

Um povo que se orgulha de sua origem, que enaltece sua ancestralidade e promove a inclusão e o respeito àqueles que originariamente habitavam o nosso território é um povo forte, soberano, respeitado mundialmente e feliz.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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