Vanguardas do Conhecimento

Sem empatia o debate político fracassa

Estudo científico traz novas evidências que sugerem por que o homem tem dificuldade de dialogar sobre política

O plenário da Câmara: o debate político é essencial, mas delicado
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Para que grandes sociedades floresçam e perdurem, seus componentes devem comungar de uma mesma visão de mundo, de crenças, lutar por algum objetivo comum etc. Por muito tempo, tal comunhão girava em torno de reis e/ou grandes líderes. Estes determinavam os objetivos do grupo e sua palavra era lei.

Com a maior dispersão do conhecimento e o empoderamento de partes da sociedade até então subordinadas, o debate entre ideias diferentes a fim de definir crenças e ações do grupo tornou-se cada vez mais importante.

A opinião dos líderes continua tendo um peso maior, porém a capacidade de se manter aberto a mudanças de crença através da influência de seus pares é um atributo crescentemente necessário para evitar que os debates virem polarizações, gerando por fim estagnação ou ruptura. Os exemplos variam em escala, desde um casamento até a organização de sociedades complexas.

Kaplan e colaboradores publicaram um trabalho há algumas semanas na revista Scientific Reports, do grupo Nature, intitulado “Correlatos Neurais da manutenção de crenças políticas em face de evidências contrárias”.

Embora haja limitações, o trabalho foi cuidadosamente desenhado e trouxe insights importantes. Um dos principais, que corrobora trabalhos anteriores e parece algo intuitivo, é o de que é mais difícil mudar a opinião política de alguém (por exemplo, “As leis que regulam porte de arma nos EUA deveriam ser mais restritivas.”) do que a opinião não-política (“Tomar multivitaminas diariamente melhora a saúde.”).

O mais interessante é que, quando confrontados com evidências, houve, no cérebro dessas pessoas, uma modulação da atividade de regiões relacionadas com a reflexão sobre si mesmo e suas questões morais (Rede de modo padrão – DMN em inglês), e uma maior ativação da ínsula e da amígdala, regiões classicamente relacionadas a processamento de emoções, principalmente associadas a percepções de ameaça, incerteza e ansiedade.

Em resumo, o artigo sugere que as evidências contrárias às suas crenças são recebidas pelas pessoas como ameaça a sua definição de si mesmo, e isso faz muito sentido.

A personalidade é dependente da moral particular, que em muitos aspectos é um reflexo da moral social. Esta última é definida pela educação, cultura, costumes, religião etc. Obviamente, não são definições estanques, mas construções dinâmicas e complexas do dia-a-dia de relações entre os agentes sociais (pessoas ou instituições).

As visões políticas são intimamente relacionadas à moral. Jonathan Haidt, psicólogo social, e seus colaboradores definiram fundamentos transculturais inatos da moral, como justiça, autoridade, lealdade, etc., sobre os quais se constroem as morais das diversas culturas.

Em seus trabalhos, Haidt mostra também que as visões políticas mais comuns nos Estados Unidos – os liberais, mais à esquerda, e os conservadores, mais à direita no espectro político – estão relacionadas a combinações diferentes dos mesmos fundamentos morais. Se visão política é construída sobre bases morais e se a moral nos define, tal visão política também faz parte daquilo que somos.

O homem foi moldado evolutivamente, assim como outros animais, em ambientes onde era essencial saber reconhecer ameaças à integridade física. Em um mundo onde boa parte da vida relacional se passa no meio virtual, a ameaça física pode importar menos do que uma ameaça à imagem. Uma simples evidência que contrarie a visão política pode ser entendida como um ataque.

A internet e as redes sociais têm vantagens sem fim e são um caminho sem volta, mas, como tudo na vida, têm suas limitações e trazem novos desafios. Um deles é o fato de que, em um ambiente com bombardeio rotineiro de evidências (mentirosas ou não) contrárias às crenças, biologicamente os humanos se veem como zebras em covil de leões.

Tendem então a procurar uma zona de conforto, um lugar conhecido, seguro; enfim, onde as crenças se confirmem. Não é de se espantar que, nesse contexto, tendências políticas extremistas, embasadas muito mais em questões emocionais (ódio, raiva, paixão, idolatria, etc.) do que racionais, ganhem força.

As redes sociais ainda ajudam a reunir pessoas que pensam de forma semelhante independentemente da distância; e elas reforçam suas crenças entre si através da repetição incessante de informações que justificam aquilo que já acreditam, e geralmente com pouca preocupação em relação à fonte, qualidade da evidência ou justeza das conclusões. Basta confirmar sua crença ou negar a crença oposta que já vale publicar!

Daniel Kahnemann, psicólogo e pesquisador de economia comportamental, além de ganhador do Prêmio Nobel de Economia (2002), diz o seguinte: “Um jeito confiável de fazer as pessoas acreditarem em afirmações falsas é repetição frequente, por que a familiaridade não é facilmente distinguida da verdade.” De fato Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolf Hitler na Alemanha Nazista, dizia isso de forma mais pop, “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.

O resultado é uma sociedade polarizada, com paixão cega a líderes e ódio aos “inimigos” que pensam diferente. A razão passa longe!

O problema é sério. Para atacá-lo, é preciso entendê-lo e saber por que as abordagens tentadas até então não funcionaram.

Nosso senso comum acredita que o julgamento humano é racional. Contudo, parece que não é bem assim. Kahnemann sistematizou um conjunto de evidências em seu best-seller, intitulado Rápido e devagar, no qual classifica as duas formas de pensar do ser humano. A primeira, chamada de Sistema 1, é intuitiva, rápida, subconsciente e emocional. O Sistema 2 é lento, racional, consciente e requer esforço.

Jonathan Haidt usa a metáfora de um condutor (Sistema 2) sobre um elefante (Sistema 1) para ilustrar como é difícil montar um animal tão forte e pesado. Ao contrário do que a maioria pensa, é o elefante que frequentemente nos conduz.

Em um de seus trabalhos mais citados, Haidt explica por que o modelo racional clássico, em que a razão é a causa das decisões morais, não é mais adequado frente às novas evidências. Ele propõe então um paradigma onde o juízo moral é primordialmente consequência da intuição (Sistema 1), não da razão (Sistema 2). A razão, na maioria das vezes, é usada apenas para uma justificação a posteriori daquilo que já foi decidido a priori intuitivamente.

Ele acrescenta que a razão assume muito mais uma função de advogado construindo uma peça de defesa do que de juiz tentando descobrir a verdade. Não adianta apresentar robusta peça de defesa de um ponto de vista, se o juiz já decidiu pelo outro lado. De fato, evidências mostram que isso pode gerar um efeito de “tiro pela culatra”, ou seja, a pessoa que se está tentando persuadir potencialmente reforça suas crenças, ao invés de aceitar as evidências que provam o contrário.

Estamos então fadados a decisões pouco racionais? Nunca chegaremos a consensos? Não necessariamente. É preciso mudar a abordagem e aumentar a eficiência da comunicação. Apelar apenas à mensagem, por mais racional e óbvia que pareça, é insuficiente. Devemos tratar também de “como” a apresentamos, como ouvimos o outro.

É importante fomentar um ambiente conciliador de redução de incertezas, de estímulo para que o debate seja baseado mais em boas evidências do que em mentiras e depreciação do outro. Todos querem o melhor para o país e o mundo, mas diferem no método por que entendem os problemas de formas diferentes.

Toda essa nova abordagem depende primordialmente do condutor (Sistema 2). Só ele é capaz de busca ativa de regulação emocional, atenção ao outro e de manter intuições e pensamentos conflitantes para lentamente chegar a decisões mais ponderadas. Depois de melhor entender o problema à luz das novas evidências, o desafio contemporâneo é aprender a domar essa manada indócil de ferozes elefantes políticos.

*Daniel Almeida Filho é doutorando em Neurociências no Instituto do Cérebro da UFRN

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