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Pós-verdade: o conceito político da moda é equivocado

Como a verdade não é acessível ao ser humano atual, a pós-verdade é um conceito falho e que prejudica a compreensão da política

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O uso do termo composto “pós-verdade” (“post-truth”, na versão inglesa) teve um crescimento de 2000% no ano de 2016, o que levou os Dicionários Oxford a elegê-lo a palavra do ano. A partir daí, brasileiros e pessoas de outras nacionalidades começaram a usá-lo ainda mais, como se fosse uma grande sacada da pós-modernidade.

Segundo os Dicionários Oxford, pós-verdade “se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.

O primeiro grande equívoco é que não existem fatos objetivos, pois todo fato, enquanto evento percebido pelo homem, é subjetivo. Essa diferenciação, que remonta a Jürgen Habermas e outros autores, já é tradicional na filosofia e busca facilitar a compreensão de que ninguém acessa a ocorrência dos acontecimentos em si, na sua inteira complexidade.

Os seres humanos apreendem os eventos, os acontecimentos temporais, por meio dos seus sentidos (visão, audição, olfato, paladar e tato) e transformam essas informações em linguagem. Somente a partir daí, quando se verte os eventos em linguagem, é que se tem fatos.

Todo fato é uma interpretação do evento, uma “manipulação” humana dele, não existindo fato objetivo, mas apenas elementos objetivos do acontecimento temporal que necessariamente passarão pela subjetividade humana para entrar na sua percepção e na comunicação, conforme este autor já escreveu outras vezes de forma mais detalhada.

Se há alguma verdade, ela não é deste plano. No nível de consciência atual do ser humano, ele apenas pode apreender perspectivas limitadas dos fenômenos e objetos. A verdade, aquela compreendida como a correspondência entre o fato em linguagem e o evento, entre aquilo que se diz e aquilo que se tem na realidade, não existe na Terra. Se não há essa correspondência, pois há apenas padrões sociais (ex. cultura) e naturais (ex. os sentido humanos) que delineiam a comunicação, não há verdade tal qual concebida ao longo da história humana.

Também não há verdade relativa, normalmente compreendida como aquela que surge na comunicação (verdade por consenso), pois também não há correspondência entre o fato pensado em linguagem por uma pessoa e o pensado por outra. Cada qual molda a sua realidade de uma forma, ainda que submetida por eventos objetivos em si, mas sempre sujeitos à subjetividade de cada ser humano, por mais simples que sejam os eventos.

A visão sobre o mundo precisa ser, portanto, extremamente complexa: nem presa a um suposto realismo objetivo, nem a um suposto subjetivismo. São os padrões sociais (subjetivos) e naturais (objetivos) que permitem a construção (sempre subjetiva) de informações e a comunicação em linguagem a partir de eventos (em si objetivos).

Dito isso, a manipulação dos fatos, ou dos eventos vertidos em linguagem, que são construções humanas, sempre existiu, seja de forma consciente, seja inconsciente. Os reis, por muito tempo, venderam a ideia de que eram enviados especiais de Deus.

O que há hoje é um acirramento das discordâncias por conta do momento de crise econômica vivido desde o final de 2007, com agravamento em 2009, que desembocou em crises políticas e de outras naturezas em várias partes do mundo, assim como há um aperfeiçoamento dos instrumentos de manipulação dos padrões sociais e naturais por conta dos avanços científicos que levaram, dentre outras coisas, a acelerar a obtenção de dados sobre as pessoas e o fornecimento a elas das informações das quais se quer convencê-las. 

A ideia de pós-verdade é, portanto, uma má compreensão de como o homem se relaciona com o mundo, de como ele constrói informações e se comunica. O pior é que ela reforça a inadequada ideia clássica de verdade, induzindo a crer que existiriam fatos objetivos negados pelas pessoas por conta de suas crenças, o que não acontece exatamente dessa forma. Todos constroem fatos influenciados pelas suas crenças, sobretudo políticas, e, quanto mais paixão, mais fácil a manipulação.  

Fatos tidos por objetivos e irrefutáveis em dado momento histórico são quase sempre desmentidos, ou a compreensão deles é aperfeiçoada. Isso acontece até mesmo com as Ciências Naturais, como a própria Física, um seio científico de suposta observação e explicação.

Teorias físicas, como a do geocentrismo, levaram à morte de pessoas, porém foram, mais tarde, desmentidas. No início do século XX, a Física Clássica Newtoniana, aceita por séculos, foi revogada em parte pela Física Quântica. O gênio Nietzsche, antes mesmo que isso acontecesse, já dizia, no livro Além do Bem e do Mal, “que a Física, também, é somente uma interpretação e um arranjo do mundo (de acordo com nós mesmos! Se é que posso dizer), e não uma explicação do mundo”. 

A crença numa verdade única e objetiva é uma das principais causas de conflitos de todas as naturezas, pois leva ao afastamento entre os homens, a uma noção de que há algo verdadeiro a ser descoberto por cada ser humano.

Essa visão individualista do conhecimento leva a um fechamento de cada indivíduo em relação às visões do outro. Cada um pensa ser o detentor da verdade e, por isso, estaria apto a atacar os demais que lhe são contrários, pois, associada a essa detenção da verdade, muitas vezes está a de detenção do bem, do fazer certo. Pensa-se, portanto, que, por estar do lado do PT, o da verdade, do bem, atacar o lado contrário, do mal, seria fazer o certo, e vice-versa.

A busca pela verdade científica, o uso da lógica formal e o estudo de métodos foram muito importantes para os avanços no conhecimento humano havidos nos últimos séculos, inclusive para o desenvolvimento tecnológico que permitiu uma melhoria de vida, em regra, da população mundial.

Por outro lado, essa visão formalista e individualista do mundo, associada ao materialismo que ganhou seu ápice com a circulação mais rápida das informações e a veloz criação de padrões superficiais de consumo, levaram à desumanização dos indivíduos, ao seu afastamento, à exacerbação da competição sobre a cooperação.

Como dizia Sócrates, a única coisa que realmente sabemos é que (quase) nada sabemos. A postura humana, para que possa progredir com velocidade e para que tenha uma vida mais feliz, deve ser de afastamento em relação à defesa de verdades e de autoquestionamento constante, de defesa de posições sempre com abertura à mudança e de aceitação, ao mesmo tempo, de duas hipóteses aparentemente contraditórias.

O processo interpretativo é extremamente sutil e determinado pelas experiências, valores e interesses de cada indivíduo. Com uma pequena mudança de perspectiva, ele pode passar a enxergar um assunto de forma completamente diferente. Assim, os mais preparados são aqueles que conseguem utilizar várias perspectivas em conjunto, trabalhando com diversas visões em inter-relação na sua mente, sendo capazes de passar de uma a outra com a troca de contextos ou de fins.

Muito mais do que lógico-formal ou semântico, o conhecimento é pragmático. Ele deve estar voltado para a solução de problemas, para a melhoria da vida da população em geral, sobretudo daqueles que mais necessitam. O conceito de verdade deve ser substituído no centro do conhecimento humano pelo de cooperação. 

Quanto mais crentes em suas verdades, mais teimosas as pessoas se tornam e, portanto, mais dificuldades têm de aprender. Quanto mais certeza e menos abertura para ouvir, elas progridem mais lentamente e tendem a ficar para trás em relação às que procuram ler, ouvir e se questionar sobre tudo.

A postura do homem do futuro deve ser a de sair do seu próprio corpo e atacar as suas próprias ideias, como se elas fossem de outrem. Não significa se questionar rapidamente e retornar à ideia inicialmente defendida, sob pena de ter o orgulho ferido. O homem acima da média consegue se questionar como se tivesse criticando outra pessoa, partindo do pressuposto da sua alta falibilidade e do seu avanço limitado na senda do conhecimento, que leva bilhões de anos de reencarnações.

Apesar de abstratas e inofensivas, as ideias acima são essenciais para compreender o posicionamento político dos demais e de nós mesmos, e para que se possa tornar as visões mais complexas, mais inteligentes. 

A defesa de verdades ou da existência de pós-verdades na política é algo pobre, que leva a erros graves. As ideias e os políticos são mais ou menos adequados em dado contexto, para solucionar problemas específicos. O cidadão politizado deve ser capaz de mudar, até com certa flexibilidade, de opinião e de político preferido, pois não existe uma verdade única, imutável.

Se não existe verdade, não existe algo que venha depois disso, ou uma manipulação disso. A pós-verdade é apenas uma construção dos eventos, ao colocá-los em linguagem factual, para longe dos padrões sociais e naturais vigentes, e ela não é necessariamente má, pois a verdade de hoje é quase sempre a mentira de amanhã e a sua qualidade será definida pragmaticamente, pelos fins que quer realizar: se egoístas ou caridosos, se orgulhosos ou humildes, se odiosos ou amorosos.  

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