Vanguardas do Conhecimento

Qual é a imagem do Brasil no exterior?

São muitas, e estar atento a elas é se interpretar e se reinventar. Isso inclui entender melhor o que projetamos no exterior

Skidmore: pioneiro nos Estudos Brasileiros
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Na Queen’s University Belfast, Irlanda do Norte, uma das mais respeitadas universidades do Reino Unido, foi possível assistir e participar neste mês de novembro de uma ação coletiva das mais prementes: colocar o Brasil sob o holofote. 

Brazil in the Spotlight (o Brasil sob o holofote) foi justamente o nome do evento organizado pela Rede Europeia de Brasilianistas de Análise Cultural (Rebrac), onde miríades de questões importantes foram debatidas, da difusão do livro e da literatura brasileira no exterior ao impacto das narrativas sobre a crise política e econômica do Brasil na imprensa internacional. Mas por que o Brasil deveria prestar mais atenção ao que associações como a Rebrac têm a dizer?

Os brasileiros se surpreenderiam com o interesse e a paixão de pesquisadores de várias nacionalidades dedicados a temas brasileiros. Surpreenderiam-se também, sobretudo, com as contribuições daqueles que olham o Brasil por outros ângulos, com um distanciamento que não é apenas geográfico, e que pode apontar caminhos para além dos falsos binarismos que têm caracterizado algumas análises sobre o País hoje.

Os brasilianistas, pesquisadores (brasileiros ou não) que se dedicam a estudar aspectos do Brasil, não são em grande número, mas estão certamente enraizados nas melhores instituições da Europa e dos Estados Unidos. Há uma razão histórica para isso. 

Como campo de pesquisa, os Estudos Brasileiros (Brazilian Studies) ganharam visibilidade na comunidade acadêmica internacional em fins dos anos 1950 e durante os anos 60, sobretudo no mundo anglo-saxão (EUA e Grã-Bretanha), embora países como França e Alemanha também tenham tido protagonismo.

Num contexto marcado pela Guerra Fria, os Estados Unidos e seus parceiros do dito bloco ocidental tinham interesses estratégicos e geopolíticos muito nítidos a serem defendidos na América Latina, o que envolvia monitorar uma área caracterizada por grandes mercados em potencial e abundância de recursos naturais.   

Nesse momento, o reconhecimento das particularidades linguísticas, sociais e culturais do Brasil fez com que alguns especialistas talentosos fossem incentivados por bolsas e financiamentos de pesquisa a se dedicar especificamente ao País. Os Estudos Brasileiros foram, dessa forma, se autonomizando em universidades e centros de pesquisa pelo mundo. O campo foi se constituindo e, com ele, a figura do brasilianista.

Devido a essa origem ligada a disputas geopolíticas internacionais, o termo “brasilianista” adquiriu certa aura de suspeita entre acadêmicos brasileiros, ainda mais acentuadamente depois do golpe militar de 1964, quando a hoje documentada participação norte-americana era ainda considerada por alguns como “paranoia das esquerdas”.

A imagem dos brasilianistas foi mudando, no entanto, devido à contribuição decisiva que tiveram para a compreensão de aspectos da história, da política, da economia e da cultura brasileiras. Além disso, a atuação de alguns deles foi não apenas seminal em seus campos de pesquisa, mas também progressista.

Um caso emblemático é o do historiador norte-americano Thomas Skidmore, falecido em junho deste ano. Tendo passado por Oxford nos anos 50, Skidmore doutorou-se em Harvard em 1960 e em 1967 publicou uma obra que se consolidou como leitura fundamental sobre o Brasil, dentro e fora do país.

Traduzida em português como Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco, a análise cobre o período crucial de 1930 à 1964 com prosa instigante e uso brilhante das fontes, o que faz com que o livro continue sendo parte integrante da bibliografia de cursos universitários de História do Brasil ainda hoje.

Como intelectual, em pelo menos duas ocasiões teve atritos com a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Em 1970, Skidmore assinou com outros brasilianistas uma carta aberta denunciando a prisão política do historiador marxista Caio Prado Júnior e criticando a perseguição de acadêmicos e intelectuais no Brasil. Como represália, o governo brasileiro lhe negou o visto de pesquisador para dar um curso na Unicamp no verão de 1970. Em 1984, já em pleno período da distensão, Skidmore foi convocado a comparecer na Polícia Federal e ameaçado de extradição por criticar a situação política do Brasil.

Estudiosos do Brasil no exterior, brasileiros ou não, progressistas ou não, têm contribuído de maneira silenciosa mas constante para a sensibilização internacional sobre o Brasil e as questões que afetam o País. Os cursos oferecidos por esses professores e pesquisadores em suas respectivas instituições e países formam anualmente inúmeros especialistas em áreas como História, Economia, Sociologia, Língua Portuguesa e Literatura Brasileira.

Os graduados e pós-graduados formados nesses centros de estudo frequentemente ocupam posições de relevância estratégica internacional: embaixadas, universidades, instituições de pesquisa e de fomento, órgãos governamentais e organizações internacionais de toda a espécie e, claro, veículos de imprensa internacional.

Recentemente, em meio à crise política e às confabulações parlamentares que levaram ao controverso processo de impeachment no Brasil, as diferenças entre a cobertura da imprensa internacional e da imprensa local se tornaram gritantes.

As narrativas sobre a crise em jornais como The New York Times (EUA), The Guardian (Reino Unido), Der Spiegel (Alemanha) ou Le Monde (França) contrastaram significativamente com a abordagem da grande imprensa brasileira, fato que foi explorado por vários analistas.

A questão é que, diferente do que ocorria há algumas décadas, a imprensa internacional não reproduz mais apenas os eventos e abordagens dados pelo noticiário local. Cada vez mais, veículos jornalísticos de fora do País contam com correspondentes em locus, muitas vezes com formação e especialização em Estudos Brasileiros ou Latino-americanos.

A imprensa internacional e as agências de notícias contam geralmente com profissionais especializados ou, pelo menos, com consultores que são especialistas em temas brasileiros.

Isso é reflexo, entre outras coisas, do desenvolvimento e aprofundamento de pesquisas sobre o Brasil em universidades europeias e norte-americanas, o que produz uma maior capacidade entre estrangeiros de analisar os fenômenos sociais brasileiros e de desenvolver abordagens descoladas da narrativa hegemônica da grande mídia nacional.

Obviamente, isso não significa que os brasileiros devam aceitar passivamente as narrativas construídas sobre o Brasil no exterior. Infelizmente, ainda é possível encontrar estereótipos e leituras equivocadas em matérias da imprensa internacional. Desmistificar visões estereotipadas e desarmar o foco no “exotismo” é um trabalho constante e necessário para os que pesquisam e estudam o Brasil fora do País.

O trabalho de pesquisadores dedicados a temas brasileiros tem, entretanto, uma importância crucial na formação de quadros especializados sobre o País no exterior e isso tem impacto inegável na percepção internacional. Para os que estão no Brasil, olhares estrangeiros, ou de brasileiros que trabalham em instituições estrangeiras, podem ser complementares à produção nacional e mostrar novos ângulos sobre questões que nos são caras.

Muito comumente, um olhar desfamiliarizado tem o poder de nos confrontar com a natureza mais instigante e brutal daquilo que somos. É preciso que o Brasil siga no esforço coletivo interminável de se buscar e de se interpretar, para que possamos seguir nos reinventando. Isso inclui, certamente, entendermos melhor a imagem que projetamos no olhar do outro.   

*Daniel Mandur Thomaz é doutorando e professor de Literatura em Oxford

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