Vanguardas do Conhecimento

Brasil, o país eternamente do futuro?

Se o brasileiro que teve acesso à educação de qualidade não sentir responsabilidade de buscar soluções para os desafios do País, quem sentirá?

Falta pesquisa de ponta no Brasil, em Brasília
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A graduação termina. De “futuro do país”, o jovem se torna aquele que o constrói. Quando tudo é incerto, decisões são feitas para não fechar portas ou para fugir de uma caminhada pré-definida. As escolhas são ponderadas considerando o lado profissional e o pessoal. Esse tipo de encruzilhada é normal para a maioria das pessoas, mas a caminhada é diferente para um profissional de ciência e tecnologia no Brasil.

A ciência é peça fundamental de qualquer nação contemporânea. Na parte básica, ela ensina sobre nós mesmos, fornece uma visão abstrata do mundo, descobre relações de causa e efeito, instiga a curiosidade. Na parte aplicada, permite o desenvolvimento de tecnologias que melhoram o conforto, diminuem distâncias, previnem e curam doenças, evitam catástrofes, geram empregos e crescimento econômico.

Nas universidades de maior reputação do mundo, a posição de professor é um prestígio extremamente competitivo, disputado por mentes brilhantes de vários países. Não basta um título de doutor, mas um currículo que se sobressaia.

Algumas exigências comuns são: habilidades em demanda, escrever bem, saber matemática e estatística, criatividade, captação de recurso, rede de contatos, capacidade de realização de pesquisa de excelência (normalmente provada por meio de publicações em prestigiosas revistas) e um plano de pesquisa original para os próximos anos.

No Brasil, a ciência e a tecnologia ainda estão amadurecendo. Há poucos anos, um mestrado era suficiente para se tornar professor nas melhores universidades do País. Hoje existe excesso de doutores para o número de vagas para professores nas universidades. 

Isso não é necessariamente ruim. Na verdade é o resultado natural de um investimento governamental maior em capacitação. Esse excesso permite às universidades brasileiras preencherem seu quadro com profissionais mais competitivos e abastece o mercado com pessoas qualificadas a resolver problemas específicos e complexos que exigem alta especialização.

É preciso, porém, garantir que os programas de doutorado sejam de alta qualidade, capazes de formar mentes inovadoras, criativas e independentes. Um desafio a se resolver, por exemplo, é que o meio acadêmico brasileiro ainda se perde em debates que valorizam mais o número de publicações do que a relevância da pesquisa.

O amadurecimento científico de uma universidade pode ser classificado em três níveis. O primeiro ocorre quando a universidade consome o conhecimento produzido em outros lugares. Ela tem professores qualificados para ensinar um conhecimento relativamente avançado, mas é limitada na capacidade de pesquisa e senso crítico sobre a produção do conhecimento.

O segundo ocorre quando as universidades são equipadas de instrumentos de alta tecnologia e conhecimentos técnicos específicos, fazem contribuições incrementais à ciência e à tecnologia que acontecem ao redor do mundo, conseguem aplicar o conhecimento, mas carecem de pesquisas realmente revolucionárias.

O terceiro e último nível se refere às universidades que produzem conhecimento original (básico ou aplicado) e de alta relevância, com potencial de transformar uma área do conhecimento ou até mesmo da sociedade, seja por entender melhor a realidade e as nuances que tornam o aprendizado algo não trivial, seja por resolver problemas práticos.

Nessa escala de maturidade, as melhores universidades do Brasil estariam no segundo nível com oportunidades para o terceiro nível, mas situações pendentes de primeiro nível. Elas têm professores qualificados, e relativo acesso e domínio técnico do conhecimento. Com algumas exceções, desenvolvem pouca ciência e tecnologia original que coloque o País na vanguarda do conhecimento mundial.

O amadurecimento da ciência no Brasil já permite alguns avanços importantes para a realidade brasileira que não se conseguiria de outra forma. Um exemplo é o caso da vacina para a gripe H1N1.

Em 2009, o mundo viu um surto da gripe suína (vírus H1N1). Preocupado com uma pandemia dentro do país, o governo brasileiro encomendou 83 milhões de doses de vacina a um custo de cerca de 1 bilhão de reais. A maior parte desse investimento foi para dois laboratórios internacionais. É um custo altíssimo para um país do tamanho do Brasil. Como parte do acordo, porém, garantiu-se transferência de tecnologia para o Instituto Butantan.

Em 2016, o Butantan já era o maior responsável pela produção de vacina de gripe suína obtida pelo SUS, resultando em melhoria da saúde pública do país e em economia direta de gastos governamentais. Essa situação não seria possível se as instituições de pesquisa do Brasil não tivessem profissionais com uma capacidade técnica além do aprender pelo aprender.

Além disso, universidades nacionais lideraram publicações na Nature e Science, as revistas científicas de maior prestígio no mundo e um brasileiro ganhou o “prêmio nobel” da matemática.

O desafio é tornar o Brasil capaz não só de acompanhar a ciência e a tecnologia que acontecem no mundo, mas também desenvolver pesquisas que se tornem referência para o mercado interno e internacional. Esse processo exige recursos, pessoas bem qualificadas e uma reestruturação organizacional.

Para se ter uma ideia, laboratórios brasileiros ainda têm dificuldades de importar insumos básicos para pesquisa (células, reagentes, enzimas). Por vezes esses componentes estragam antes mesmo de chegar ao destino final por questões alfandegárias. Além disso, questões jurídicas podem obrigar a compra de equipamentos de segunda qualidade e dificultar contratação de recursos humanos. O marco regulatório da ciência foi recentemente sancionado com o intuito de facilitar o desenvolvimento de ciência e tecnologia no País.

No quesito educação, o potencial brasileiro é subaproveitado. Apenas 8% da população brasileira é considerada proficiente (capaz de se expressar por letras e números) e o analfabestimo funcional atinge até mesmo o nível superior. Se isso é motivo de preocupação, a boa notícia é que o índice de analfabetismo brasileiro vem diminuindo ao longo dos anos e a escolaridade está aumentando.

Aumentar a escolaridade não é sinônimo de qualidade, mas fornece dados para saber o tamanho do problema e o que pode ser feito para melhoria. Educação de qualidade fornece mentes mais preparadas para resolver problemas do sistema brasileiro, para as universidades, e é fundamental para a ciência e tecnologia de um país como um todo.

Voltando ao jovem brasileiro, ele herdou um país sem tradição em ciência e tecnologia. Um título de doutorado não mais garante uma posição de professor na maioria das universidades. Mesmo cheio de potencial e curiosidade, alguns decidem abandonar a carreira sem nem começar por não saber se terão oportunidades no futuro.

Isso mantém o País fora de um mercado mundial que apenas na área de biotecnologia é avaliado em cerca de 400 bilhões de dólares, aproximadamente 20% do PIB do Brasil. O Brasil precisa que sua juventude se interesse pela área científica e, quem sabe, traga novas oportunidades para o País.

A responsabilidade de construir uma nação é sempre da geração atual. O nível superior, independentemente da qualidade, é oportunizado para não mais que 15% da população adulta brasileira. Se a realidade é desafiante para o brasileiro de melhor formação, imagine para a maioria que sequer tem oportunidade de sonhar com o nível superior.

O amadurecimento da ciência e tecnologia em um país não ocorre da noite para o dia e nem de forma milagrosa ou de uma mente heroica. Ele depende de um coletivo de mentes pensantes, trabalho e um sistema que facilite a sobrevivência de ideias boas e sustentáveis e desfavoreça, por exemplo, a transformação do doutorado em apenas um ritual de distribuição de títulos.

Se o brasileiro que teve acesso à educação de qualidade não sentir responsabilidade de buscar soluções para os desafios do País (e trabalhar para isso), quem sentirá? Esse é só mais um dos desafios do Brasil, país incrível, com uma cultura incrível e que ainda está amadurecendo.

*Antonio Gomes, doutor em Bioinformática, é biologista computacional sênior na MSKCC, em Nova York (Estados Unidos)

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