Vanguardas do Conhecimento

A reforma da Previdência prejudicará a economia

Como está, a proposta do governo Temer quebrará expectativas e aumentará a já enorme desigualdade

Metalúrgicos do ABC organizam ato contra a reforma da Previdência na rodovia Anchieta, em São Bernardo do Campo (SP)
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Em texto anterior, o aumento da idade para aposentadoria e do tempo de contribuição foram vistos como aceitáveis, e dois grandes problemas foram apontados na proposta de reforma da Previdência: a) produção de efeitos imediata; e b) falta de medidas para melhorar a distribuição de renda.

Para alguns, tal texto anterior lançou uma perspectiva favorável demais à reforma, mas era preciso fazê-lo frente ao clamor parcialmente injustificado que se criou contra ela. Passada essa mensagem, este texto é menos otimista do que o outro. Pela complexidade e importância do tema, serão necessários muitos textos e várias óticas para tratar dele.

De posse de diferentes perspectivas, mas com fundamentações coerentes entre si, será possível o leitor ter uma visão mais dialética, complexa e equilibrada sobre o assunto.

Isso mostra a importância de ter cautela nos debates, pois duas pessoas – ou até uma mesma pessoa, como é aqui o caso – podem estar falando a mesma coisa, porém, pelas diferentes perspectivas, pelos diferentes pesos dados aos argumentos, pode parecer que defendem posições opostas.

É pouco discutível hoje que há um crescente aumento da expectativa de vida no País juntamente com queda de natalidade, o que deve se agravar nos próximos anos. Supõe-se que todos querem viver mais, então o aumento da expectativa de vida é um ganho importante enquanto sociedade.

Acontece que o problema do aumento da expectativa de vida no Brasil é de médio a longo prazo e varia regionalmente. Deste modo, se não é um problema linear e de curtíssimo prazo, a reforma não pode começar a valer imediatamente, nem no ano seguinte à sua aprovação.

Uma reforma da previdência não deve apenas respeitar direitos adquiridos, que é um direito constitucional fundamental. Deve respeitar também as “expectativas adquiridas”, as estratégias de vida criadas pelos indivíduos face às leis que estão hoje postas. Reforma previdenciária deve produzir efeitos sobre as pessoas em médio a longo prazo. 

O limite de idade de 65 anos e o tempo de contribuição de 25 anos com recebimento de 76% dos benefícios podem ser aceitos desde que comecem a valer daqui a 10 a 15 anos, quando as pessoas terão tido tempo para se adequar às novas regras e o País terá podido se preparar e mitigar alguns dos efeitos negativos da reforma, que, se aprovada como está, gerará mais desemprego e desigualdade, levando a economia a mais crise.

Com as pessoas se aposentando mais tarde, o mercado de trabalho pode ficar inchado no curto prazo. Isso apenas não acontecerá se houver diminuição da chegada a ele de novas pessoas na mesma proporção, o que reforça a ideia de uma reforma gradual.  

Com maior oferta de empregados no mercado, alguns países não notaram aumento de desemprego, mas redução de salários e benefícios. No entanto, ao se falar do Brasil, país que já tem problemas de desemprego com frequência, como neste exato momento, é preciso mais cuidado.

Os números do próprio governo projetam um crescimento de expectativa de vida mais acentuado a partir de 2030 e o ponto normalmente usado como de grande mudança no desenho etário do País é 2060. Que a reforma comece a valer, então, efetivamente em 2030.

Hipótese interessante é um endurecimento gradual das regras, que só se iniciaria dentro de alguns anos (ex. 2020) com um crescimento gradual ao longo de dez anos do limite de idade (ex. de 55 a 65) e do tempo de contribuição (ex. 15 a 25), ou seja, aumento de 1 ano de idade e de tempo de contribuição a cada 1 ano que se passar.

Numa crise de dívida privada e de baixa demanda agregada, reduzir renda de quem tem menos é erro grave. A fixação fiscal do governo e sua pouca preocupação com o social estão levando-o a estender uma crise econômica que já poderia ter sido amenizada.   

Outro ponto muito fraco do sistema brasileiro é a relação de pouquíssima progressividade entre o financiamento e o benefício. Uma das principais funções da previdência é aliviar pobreza, fazendo distribuição de renda entre os aposentados, uma política menos distorciva do que distribuir renda a quem está em idade produtiva, o que pode reduzir a vontade de trabalhar.  

Os países com um sistema de previdência minimamente decente se preocupam com isso. Há diferentes sistemáticas, como financiar a previdência com contribuições bem progressivas; ou com outros tributos, como um Imposto de Renda bem progressivo; ou cobrar uma contribuição por alíquota única, sem progressividade, mas pagando o mesmo valor de benefício a todos, o que gera progressividade pelo outro lado do sistema.

Em qualquer país sério, faltando dinheiro para pagar benefícios previdenciários, uma das primeiras hipóteses é reduzi-los para os que ganharam mais e que, assim, deveriam ter poupado mais. Na Austrália, há um teste (means test) que considera a renda ganha e a poupada (riqueza).

O sistema brasileiro, que não será alterado nesse aspecto, faz uma progressividade mixuruca, assim como acontece com a sua tributação da renda e da riqueza, enquanto que a regressividade é muito mais pesada, de modo que ele é, no seu todo, inconstitucional, pois fere o princípio jurídico-econômico mais básico da tributação, já defendido por Adam Smith em 1776.  

Se começar a valer em 2017 tal como foi proposta, a reforma da Previdência aprofundará o estado de inconstitucionalidade das sistemáticas de tributação e distribuição (tax and transfers), ou seja, significa fazer a Constituição de 1988 se tornar, cada vez mais, um papel com grafias sem eficácia social, sem serventia.

Não se pode partir para a defesa de atecnias, entretanto. É preciso atacar o problema com argumentos técnicos. A ideia de que a previdência não gera déficit é falsa. Ela se baseia no fato de que péssimos tributos, como PIS, Cofins e CSLL, financiam a seguridade social, e a previdência é parte dela.

Se uma é parte da outra, elas não se igualam. A seguridade engloba também saúde e assistência social. Com o superávit da seguridade, o ideal seria elevar investimentos na saúde e/ou, o que também é imprescindível, reduzir PIS, Cofins e CSLL, três jabuticabas tributárias que precisam ser extintas num futuro próximo.

Esses três tributos não existem em nenhum país minimamente desenvolvido do mundo. O PIS e a Cofins são completamente regressivos e incidem sobre toda a receita da empresa, independentemente de ela gerar lucro no ano ou não. São tributos que, além de elevarem preços de bens e serviços, reduzindo no dia a dia o poder de compra da população e o giro da economia, sequer respeitam a capacidade econômica dos contribuintes.

A CSLL é um IRPJ remendado. Suas bases de cálculo são praticamente idênticas. Só no Brasil isso ocorre. CSLL deve ser fundida dentro do IRPJ com alguma redução de alíquota, pois, no Brasil, os dois somados chegam, em regra, a 34%, enquanto que a média da OCDE veio caindo nos últimos anos e está abaixo dos 30%.

Apenas Estados Unidos (38,92%) e França (34,43%) têm alíquotas do IRPJ acima da brasileira. Bélgica (33,99%), Alemanha (30,18%) e Austrália (30%) têm alíquotas altas também, mas todo o resto tem alíquotas menores, como Reino Unido (20%), Suécia (22%), Noruega (25%) e Holanda (25%). O Brasil deveria se esforçar para situar essa alíquota, ao menos, mais próxima da casa dos 30%.

Em qualquer reforma fiscal ampla, previdência deve ser pensada juntamente com tributação. Repita-se: a reforma da previdência deve ser, em regra, de médio a longo prazo, pois não pode quebrar expectativas, a menos que o objetivo seja cortar privilégios ou erros crassos, o que, mesmo assim, requer cuidado.

A tributação deve ser reformada em curto, médio e longo prazo. No Brasil, além da contribuição dos indivíduos, que já tem natureza de tributo, há ainda um tributo pago pela empresa, que, assim como PIS e Cofins, incide sobre a receita dela, sendo regressivo e mal medidor de capacidade econômica.

Como já dito em texto anterior, era melhor que a previdência fosse financiada, ao menos em parte, pelo Imposto de Renda da Pessoa Física, como acontece na Austrália. Para tanto, assim como nesse país e na ampla maioria dos países da OCDE, é preciso tributar os dividendos e criar alíquotas mais altas para os mais ricos. 

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