Vanguardas do Conhecimento

A indústria da precariedade no Brasil

Empregada sistematicamente pelas elites, a prática da corrupção é a ponta do iceberg de um mecanismo eficiente de perpetuação de privilégios

Manifestantes em Brasília protestam contra a corrupção em dezembro de 2016
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Em 1959, o jornalista e romancista Antônio Callado escreveu uma série de reportagens seminais para o jornal Correio da Manhã. Nelas, denunciava a exploração política da seca e os conflitos agrários no nordeste, fixando na linguagem corrente a expressão “indústria da seca”.

Callado usou o termo para caracterizar a forma de atuação de forças políticas locais capazes de explorar a tragédia da seca para obter vultuosos recursos federais, que acabavam desviados para fins particulares.

De lá para cá, algumas coisas mudaram no Brasil, muitas outras não. O que se evidencia nos escândalos envolvendo empreiteiras, grandes empresários e políticos poderosos em 2016 é que alguns elementos enxergados por Callado em 1959 não apenas continuam atuantes, mas parecem ter se tornado ainda mais operacionais.

Nesse contexto, a corrupção é apenas a ponta do iceberg, o aspecto mais visível de um mecanismo de exploração da miséria que transforma a ineficiência dos serviços públicos em um grande negócio, uma verdadeira indústria da precariedade.

O caso do Rio de Janeiro ilustra bem essa história.

A operação Calicute, que prendeu o ex-governador Sérgio Cabral, revelou um esquema de propina milionário ligando o governo do estado, nas mãos do PMDB desde 2003, e empreiteiras como a Andrade Gutierrez e a Carioca Engenharia. O esquema envolvia o pagamento de mesadas das empresas ao governador e seus correligionários, em troca de fraudes em licitações com o estado. 

Entre as operações de fraude, destacam-se desvios de verbas federais do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e recursos para reformas no Maracanã, tendo em vista a Copa do Mundo.

A Polícia Federal e o Ministério Público estimam que, apenas entre 2007 e 2014, as propinas somem 220 milhões.

O caso da construção do Arco Metropolitano é emblemático. A primeira fase do projeto, entregue em 2014, tinha como objetivo diminuir os engarrafamentos em gargalos urbanos como a ponte Rio-Niterói e a via Dutra, além de fornecer acesso expresso a pontos estratégicos de desenvolvimento econômico, como o Porto de Itaguaí e o futuro polo petroquímico de Itaboraí, o COMPERJ.

Obviamente, não foi isso o que foi entregue.

No dia 15 de agosto de 2015, o jornal O Dia publicou matéria intitulada “A estrada do descaso”, onde denunciava que a rodovia, inaugurada então há um ano, estava “sitiada por mato, buracos e violência”.

Artigos de 2015 em quase todos os veículos da imprensa nacional são parecidos: denunciam os problemas de estrutura, conservação e ressaltam que a obra, orçada a 965 milhões em 2008, acabou custando 1,9 bilhão. Isso pelos 71 quilômetros entregues em 2014.  

Nada é novo aqui. Seria possível citar milhares de obras como o Arco Metropolitano: ruas, estradas, escolas, casas populares, hospitais, sistemas de saneamento e transporte público.

Para cada tragédia brasileira, pequena ou grande, há um milionário. A precariedade é um excelente negócio para alguns grupos políticos e para grandes empresários de setores como transporte, construção civil e toda a sorte de serviços imagináveis, fornecidos ao Estado através de terceirização.  

A narrativa que se tem difundido nos veículos de imprensa associa fortemente os escândalos de corrupção ao estado, mas geralmente evita mencionar o papel da fina flor do empresariado brasileiro, sem o qual nada disso seria possível.

Na indústria da precariedade, a corrupção é o princípio operacional, o modus operandi. A prática, no entanto, é tão velha quanto as elites brasileiras, que a empregam sistematicamente há muito tempo.

Trata-se de um mecanismo extremamente eficiente de acumulação de bens e de perpetuação de privilégios. Nesse aspecto, o Brasil é muito eficiente: o país se constituiu historicamente como um grande empreendimento extrativista e vastos setores da população são usados como lenha para manter acesa as caldeiras desse engenho.

O arcaísmo como projeto 

Ainda no período colonial brasileiro, uma pequena elite mercantil se constituiu mediante atuação em um mercado imperfeito, “não regulado pela lei de oferta e procura, mas sim por privilégios obtidos na esfera política”, como ressaltam os historiadores econômicos João Fragoso e Manolo Florentino.

Em O Arcaísmo como projeto: Mercado Atlântico, Sociedade Agrária e Elite Mercantil no Rio de Janeiro, os autores mostraram como o sistema produtivo na colônia operava por mecanismos deliberadamente rudimentares de produção agrícola, possibilitados pelo latifúndio e pela farta – e relativamente barata – oferta de mão de obra escrava.

O sistema econômico era, portanto, organicamente articulado a uma hierarquia social profundamente excludente e a um ideal aristocrático que inviabilizava a dinamização das atividades econômicas.

Não foi por acaso que o tripé baseado em escravidão, latifúndio e exportação de bens primários foi mantido à mão de ferro como o modelo dominante. O Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão, em 1888, mas o sistema oligárquico que promoveu a transição para a República em 1889 parecia-se muito com o que existia antes e com o que se produziu depois.

Embora o século 20 tenha visto transformações profundas na configuração do país, certamente pela via da modernização conservadora da Era Vargas (1930-45) e pelo desenvolvimentismo dos anos JK (1956-1961), os aspectos estruturais que configuraram as relações entre estado, sistema produtivo e elites nacionais produziram marcas profundas.

A articulação entre patrimonialismo – um eufemismo sociológico para corrupção – e a concentração brutal de recursos é talvez o resultado mais evidente dessa trajetória histórica.  

O próprio “jeitinho”, ou a malandragem, essa mistura de informalidade e inteligência perversa, parece apenas uma incorporação pelas camadas populares do modus operandi daqueles que habitavam a Casa Grande.

Essa é, inclusive, a tese defendida pelo sociólogo Francisco de Oliveira, em ensaio já clássico, chamado marotamente de “Jeitinho e Jeitão: uma tentativa de interpretação do caráter brasileiro”.

Baseando-se em noções do sociólogo alemão Norbert Elias, Chico de Oliveira mostra que as praticas de burla popular se constituíram como estratégia de sobrevivência diante da “bossa” tocada pelas elites. Frente ao ritmo ditado pela orquestra, o povo precisou aprender a dançar.

Hoje, o chamado “custo Brasil” – composto de fatores como corrupção, excesso de burocracia, ineficiência da infraestrutura, entre tantos outros – estrangula a produtividade, diminui a competitividade dos produtos brasileiros no exterior e empurra vastos setores da população para a informalidade e a precariedade.

Esse é o resultado da persistência do projeto arcaizante mencionado anteriormente, que assume nos dias atuais a forma de uma verdadeira indústria da precariedade.

A exploração da ineficiência pela via da corrupção drena o país, mas também produz milionários. Eis aí um dos mais eficientes mecanismos de concentração de renda e de reprodução de privilégios.

Mesmo aquilo que chamamos de capitalismo no Brasil hoje é um sistema baseado no tipo de extrativismo pré-moderno que configurou nossas elites e deformou nosso sistema produtivo. Os industriais da precariedade usam muitas vezes uma retórica liberal, mas sua prática é basicamente patrimonialista. 

Em fins do século 19, Joaquim Nabuco defendeu que não bastava acabar com a escravidão; era preciso destruir sua obra. Ao ignorar o sábio conselho de Nabuco, a elite política que conduziu a abolição mergulhou o país na espiral de injustiça e violência hoje visível a olhos nus, sobretudo na racialização da pobreza e nos índices de mortes de jovens negros no Brasil.

O mesmo pode ser dito em relação à corrupção. Não basta lutar contra ela, é preciso também combater o seu legado: a concentração de renda e a brutal desigualdade que mancha o passado e emperra o presente do país.

*Daniel Mandur Thomaz é doutorando e professor de Literatura em Oxford

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