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8 mitos sobre a reforma da Previdência

Assim como na PEC dos gastos, o debate brasileiro sobre previdência é rico em paixão e pobre em informação

Ato contra a reforma da Previdência no grande ABC em 7 de março
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Em mais uma discussão crucial para o futuro do País, como no caso da PEC dos gastos, ambos os lados mergulham nas paixões, esquecendo de estudar o tema com profundidade, de pensá-lo pragmaticamente e de se abrir a ouvir o outro. Seguem alguns mitos do debate brasileiro. 

1 – O sistema brasileiro pode continuar como está, carecendo apenas de alguns ajustes.

A reforma do governo Temer é parcialmente boa, porém é parcialmente muito ruim. Além das importantes alterações para dar sustentabilidade fiscal e incentivo à produtividade econômica, é preciso ir mais longe e pensar em outros efeitos. 

Ela não ataca problemas graves do País que cabem à política previdenciária ajudar a resolver juntamente com as demais políticas, como: a) redução da enorme desigualdade por meio de sistemáticas de financiamento e/ou de benefícios que façam mais redistribuição de renda; b) aumento da formação de capital por um menor pagamento de benefícios aos mais ricos e criação de um sistema de capitalização ou um Notional Defined Contribution – NDC (nocional de contribuição definida) com um percentual obrigatório para eles.

2 – O sistema de repartição é de financiamento tripartite.

O sistema de repartição adotado pelo Brasil, chamado no exterior de Pay-As-You-Go (PAYGO), é o mais tradicional, conhecido e estudado. Consiste, salvo no caso de inovações, num financiamento por contribuição do empregado, que servirá de base para o cálculo do benefício, e por contribuição do empregador, que deve ajudar a fechar a conta, para que se possa pagar valores decentes.

Fala-se no Brasil como se empregados, empregadores e Estado financiassem necessariamente os benefícios e de forma autônoma. A visão deve ser outra. A ampla maioria das receitas do Estado vêm da sociedade por meio de tributos, que podem causar uma porção de efeitos muito danosos à economia. Deste modo, é sempre a sociedade que financia a Previdência, de modo que o Estado gerencia o sistema com suas receitas e despesas.

É importante perceber isso para desfazer a ilusão de que o dinheiro não sai do próprio bolso dos menos favorecidos num sistema em que quase não há progressividade no financiamento tanto da Previdência quanto do restante da seguridade social. O financiamento da Previdência é realizado por empregados e empregadores via tributos chamados de contribuições previdenciárias.

O ideal é que o Estado não precise colocar mais nada, carecendo de menos tributos, o que é muito difícil em um país tão desigual como o Brasil e com expectativa de vida crescente. No entanto, uma vez que se pretenda financiar benefícios por meio de outros tributos, eles precisam ser progressivos.

Tributos regressivos são mais facilmente repassados a consumidores e recaem, portanto, sobre toda a população, prejudicando os mais pobres ao longo de toda a sua vida: antes e depois da aposentadoria. A tributação regressiva tão alta é a principal causa de preços brasileiros astronômicos e, por isso, a ampla maioria das pessoas não consegue consumir de forma a ter uma vida razoavelmente digna.

3 – A Previdência brasileira não tem déficit

A arrecadação do Estado, como aquela da seguridade social, apenas entra pra fechar a equação da Previdência em caso de déficit. Não é algo que se espera, mas que se aceita por um tempo e se ocorrer em pequenos montantes. 

No começo, o sistema de repartição funcionava razoavelmente bem, pois as pessoas tinham muitos filhos e a expectativa de vida ainda não era tão grande. Com o progresso obtido nas últimas décadas, as famílias passaram a ter menos filhos, reduzindo a população jovem, e houve também relevantes aumentos da expectativa de vida das pessoas, um dos grandes avanços dos seres humanos nos últimos tempos.

Como os países mais desenvolvidos obtiveram antes essas mudanças, e também pelo fato de eles perceberem os problemas com mais antecedência e tentarem resolvê-los logo, muitos já modificaram os seus sistemas, seja para aperfeiçoar seu modelo de repartição, seja para agregá-lo a um modelo de capitalização, como acontece em vários países, seja para criar um modelo diferente, como o já referido NDC, existente na Suécia. 

A Previdência brasileira teve déficit de 150 bilhões em 2016 e revela um potencial déficit em torno de 200 bilhões de reais em 2017, podendo chegar ao equivalente a quase 10 Bolsas Família. O artifício para negar o déficit é considerar não mais o orçamento da Previdência, como sempre se fez ao analisar esse tipo de sistema, mas todo o orçamento da Seguridade Social, que conta com outros recursos, como PIS, Cofins e CSLL.

De qualquer forma, para tornar a seguridade superavitária, considerando as estimativas de 2017 para a Previdência, seria preciso acabar com a DRU, com as desonerações e fazer outras alterações no sistema, de modo que há, sim, déficit hoje. Caso houvesse diversas alterações nas regras, talvez se chegasse a uma seguridade social positiva, mas não a uma Previdência positiva.

4 – PIS, Cofins e CSLL poderiam financiar a Previdência

Quando se olha para o financiamento, e não se está mais preso apenas às típicas contribuições do empregado e do empregador, surge um cenário extremamente complexo de inter-relação das políticas previdenciárias com as tributárias, ambas já complexas em si mesmas.

PIS, Cofins e CSLL são tributos que não existem em nenhum país do mundo. São jabuticabas brasileiras que precisam ser extintas. Como, então, defender que eles devem ser usados para financiar a Previdência? Só mesmo “negacionistas” da reforma da Previdência – que querem impedi-la a qualquer custo, em vez de discuti-la de forma profunda e sadia – podem insistir em uma posição como essa.

PIS e Cofins são tributos que não conseguem medir adequadamente a capacidade econômica das empresas, pois a melhor medida é o resultado final da empresa: o lucro ou prejuízo. Como são contribuições cobradas sobre todas as receitas, independentemente das despesas, mesmo as empresas com prejuízo precisam pagá-las. Além disso, se há dois tributos sobre o lucro (IRPJ e CSLL), por que cobrar dois sobre as receitas? O sistema brasileiro é um dos piores do mundo, senão o pior.  

Nos países desenvolvidos, não há PIS, Cofins e CSLL, mas apenas um IRPJ, chamado de corporate income tax, que veio tendo sua alíquota reduzida nos últimos anos, pois se percebeu que é mais eficiente e equânime focar na tributação da renda da pessoa física, e não da jurídica.

O objetivo do Brasil deve ser, portanto, extinguir PIS, Cofins e CSLL. Para tanto, é preciso elevar o IRPF e reduzir os gastos excessivos, como no caso da previdência.

5 – A idade mínima não deve aumentar, pois a Previdência deve ser redistributiva 

Quanto mais desigual o país – e o Brasil é um dos mais desiguais do mundo – mais difícil é construir políticas públicas de qualidade, seja pela grande diferença existente entre as pessoas na sociedade, seja pela pressão política que os ricos fazem, seja pela rachadura social que leva a conflitos apaixonados, como no caso da própria Previdência.

Não existe a única resposta verdadeira ou correta. É preciso que a sociedade discuta qual o limite de idade razoável, considerando que hoje em dia uma pessoa com, por exemplo, 60 anos tem plenas condições de trabalhar. Com a regra atual de aposentadoria por tempo de contribuição, é possível se aposentar com 50 e poucos anos de idade.

A Previdência não tem o fim de fazer assistência social e, quando pensada assim, termina se tornando fiscalmente insustentável e economicamente ineficiente. O problema da desigualdade precisa ser resolvido por políticas focadas nele.

A Previdência pode ajudar exercendo seu papel redistributivo, seja pelo lado de seu financiamento, que precisa ser mais progressivo, seja pelo dos benefícios, que podem ter valores mais próximos, pagando-se mais a quem ganhou menos e menos a quem ganhou mais ao longo da vida, elevando, como dito, a poupança dos mais ricos.  

Até pelo fato de uma pessoa com melhor renda tender a ter vida mais longa e gozar mais da Previdência, quem ganha menos deveria pagar bem menos contribuição ou, a depender da renda, ser até isento, como acontece em muitos países, e deveria receber benefícios melhores quando estivesse aposentado; mas isso apenas numa idade em que a capacidade produtiva seja realmente bem diminuta.

Essa é a função redistributiva da Previdência. Não é garantir que as pessoas parem de trabalhar cedo e passem décadas sem produzir e sem gerar tributos, ao mesmo tempo em que o Estado precisa lhes custear ao menos um salário mínimo, ou que recebam do Estado enquanto continuam trabalhando.

6 – O problema da Previdência é a dívida das grandes empresas.

Essa afirmação faz sentido apenas parcialmente. As contribuições que financiam a Previdência são tributárias e, como todos os tributos, a administração fiscal é ineficiente ao cobrá-las por problemas históricos seus, por um processo tributário mal desenhado e por conta do Judiciário muitíssimo lento.

Não é simplesmente uma maldade do governo, como muitos colocam. Por outro lado, os incentivos fiscais poderiam, em sua maioria, ser extintos, acabando com essa renúncia de receita. 

7 – A desigualdade nas expectativas de vida não permite o aumento do limite de idade para aposentadoria.

O dado da expectativa de vida serve para perceber que mais gente irá se aposentar e passará mais tempo recebendo dinheiro do Estado. É importante para, juntamente com dados de natalidade, permitir estimativas de quanto se irá gastar com benefícios previdenciários.

Quanto à discussão acerca da desigualdade no limite de idade, a expectativa de vida baixa de alguns municípios brasileiros decorre da alta mortalidade, não propriamente do fato de as pessoas, ao chegarem à velhice, viverem muito menos do que em outros lugares.

Fatores como mortalidade infantil, falta de saneamento básico, violência e outros levam a mortes mais cedo, o que precisa ser combatido urgentemente por políticas específicas, e não tem relação direta com a Previdência.

Para efeito de fixação do limite de idade de aposentadoria, é preciso olhar para a sobrevida das pessoas ao atingirem a idade proposta, ou seja, 65 anos. Nesse caso, percebe-se que as diferenças ao longo do País não são tão diferentes, conforme dados do IBGE

8 – A reforma é urgente e precisa começar a valer ainda este ano.

O déficit é crescente e sua trajetória é muito preocupante, mas não se pode fazer mudanças drásticas sem um período de adaptação das expectativas das pessoas e dos próprios governos, salvo no caso de aberrações, como privilégios injustificáveis de políticos, juízes, promotores e militares. O ideal é que grandes mudanças previdenciárias sejam realizadas 15 ou 20 anos antes.

Um dos focos dos críticos da proposta do governo Temer deveria ser postergar os efeitos e suavizá-los ao longo do tempo, permitindo que medidas fossem tomadas para reduzir as desigualdades entre regiões e que as pessoas soubessem, bem de antemão, quando iriam se aposentar e com qual valor.

A regra de transição da proposta prejudicará imediatamente pessoas que poderiam se aposentar já em 2018 ou 2019, sendo o corte de 45 anos para mulher e 50 anos para homens um mecanismo ruim, pois prejudicará muito, por exemplo, homens com 49 anos e alguns meses que estavam prestes a se aposentar, o que não é incomum hoje. 

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